Há uns dias atrás, fui até à
Sociedade Portuguesa de Autores para resolver uns pequenos problemas de
carácter pessoal. Lá chegado, deparei-me com um grande burburinho causado por
uma figura estranha.
Um homenzarrão já entrado na
idade, envergando um fato vermelho, debruado com umas peles falsas de cor
branca e com um gorro a condizer enterrado até às orelhas. Para acentuar o
bizarro, falava num tom intenso de trombone amachucado e a sua boca mais
parecia a entrada de uma gruta nos Himalaias já que estava quase tapada por uma
imensa e espessa barba branca que lhe chegava até ao peito, morrendo num
estômago redondo como uma abóbora menina.
- Quem é a figura? Indaguei
ao recepcionista, que já estava mais transtornado do que um peru na véspera de
Natal.
- E eu sei lá quem é o cromo…
Só sei que chegou aqui aos
berros, a dizer que é o Pai Natal e veio receber os direitos que lhe são
devidos pela utilização continuada e abusiva da sua imagem de marca, imagine!
- É mesmo isso!!! Gritou o homem.
- Chame lá alguém que resolva
o problema, e rápido que eu não tenho o dia todo…
-Eu chamo mas é a polícia, se
você não desaparecer daqui.
Como sou uma alma compassiva
e previdente, antevendo uma sessão de pugilato, convidei o excêntrico a beber
um café e conversar um bocado, no intuito de o acalmar. Como ele aceitou, lá
fomos nós até uma cafetaria em frente da SPA, e sentados a uma mesa fomos
desfiando conversa. Bem interessante diga-se de passagem.
Este é sem dúvida um caso em
que as aparências não iludem.
- Oh homem, você parece mesmo
o Pai Natal, vestido dessa maneira…
- Mas eu sou o Pai Natal
-Desculpe mas não acredito,
aliás, nem sequer acredito que o Pai Natal exista, quanto mais tê-lo por aí nas
ruas com uma crise de mau feitio.
- Mau feitio diz o meu caro
amigo, mas se imaginasse as atribulações por que tenho passado, acabaria por me
dar razão.
- Tem de concordar que para
um nórdico, perde as estribeiras muito facilmente…
- E quem lhe disse que eu sou
nórdico?
- É o que consta.
- Pois consta! Mas não corresponde
à verdade.
Eu nasci em Lycia, na Ásia
Menor, hoje seria um turco de nascimento, e fui bispo de Myra, também na actual
Turquia, como vê não tenho nada de nórdico.
- Mas então de onde surge a
lenda?
- Sabe, eu era uma pessoa
muito abastada, e gostava de ajudar. Um vizinho meu, bastante pobre, tinha três
filhas que, devido à fome que passavam começaram a recorrer à prostituição para
se sustentar e à família. Eram tão solicitadas que era um desassossego à porta
da sua casa e da minha, foi então que decidi atirar para dentro da casa delas,
um saco cheio de moedas de ouro na esperança que elas com aquele dinheiro
assentassem e foi o que aconteceu, só que alguém me viu atirar o dinheiro e a
partir daí fiquei com fama de santo e nunca mais tive sossego. Tive mesmo de me
ir embora.
Neste ponto o meu
interlocutor olhou para o copo de cerveja já vazio e eu, como a sua história começava
a interessar, apressei-me a pagar mais uma rodada.
Depois de ter bebido a sua
imperial de um trago, lá prosseguiu a sua narrativa já bastante mais animado.
- Como ia dizendo, parti da
minha terra, um bocado a contra gosto, diga-se de passagem.
Quando cheguei a Bizâncio a
fama de generoso milagreiro precedia-me, de tal sorte que em qualquer lugar em
que parasse juntava-se uma pequena multidão a suplicar ajuda, e, para conseguir
alguma tranquilidade ia fazendo o que podia.
Um belo dia, num caminho
secundário, escolhido na esperança vã de não ser incomodado, deparei-me com
três rapazes prostrados, mortos, pelo menos aparentemente, e um homem atlético
com um pau na mão, a observá-los com um ar desesperado. Quando lhe perguntei o
que tinha sucedido, disse-me que eram seus aprendizes e que num acesso de fúria
os tinha morto à paulada. Fiquei horrorizado com tamanha barbaridade e, logo
ali o invectivei enquanto lhe chamava a atenção para o grande pecado que tinha
cometido. Foi então que o bruto me reconheceu, pedindo-me de joelhos e mãos
postas que os ressuscitasse e que, se eu obrasse tal prodígio, ele se converteria
à minha fé e jamais atentaria contra a vida de alguém.
Tentei explicar-lhe que tal
não era possível, que só Deus decide da vida ou da morte de cada um, e acto
contínuo debrucei-me sobre os corpos para os observar melhor. Imagine o meu
espanto quando os rapazes se ergueram ainda aparentemente atordoados da experiência do além e me
agradeceram de modo efusivo ter-lhes restituído a vida. O pobre homem, largou
de imediato em desfilada em direcção ao povoado, a gritar que Nicolau tinha
operado mais um milagre, quanto aos moços, esses assim que o viram longe,
largaram numa galhofa desabrida, vangloriando-se da partida que tinham pregado
ao infeliz, já que apenas se tinham fingido de mortos para evitar uma surra
maior.
Fiquei furioso e resolvi
aplicar-lhes um correctivo que jamais esquecessem, dei-lhes então a escolher
entre regressar à sua aldeia e contar toda a verdade, ou seguirem viagem comigo
como meus discípulos, sujeitando-se a uma existência ascética e não isenta de
perigos, tal como a minha.
Para mal dos meus pecados
aceitaram seguir-me e lá fomos os quatro, estrada fora, intentando chegar a
Roma que era ainda a grande urbe do Império para nos fixarmos por lá numa
existência pacata e sobretudo anónima, esperança vã, como mais adiante verá.
Entretanto, já a fama do
pretenso milagre correra mundo e por onde passássemos uma multidão de famintos
e desesperados se juntava a nós formando um estranho cortejo de párias e
deserdados da fortuna, muitos deles sem escrúpulos, tendo como único fito
aproveitar-se de minha fama e da ingenuidade dos demais. Entre esses, os
primeiros eram sem dúvida os meus três discípulos, se assim lhes posso chamar,
que em meu nome prometiam mundos e fundos e a salvação eterna, em troca de
inúmeros e indizíveis favores. Apesar de tudo a minha fama de santo homem ia
aumentando e com ela o número dos meus seguidores.
O fenómeno assumiu proporções
tais, que me vi perseguido e capturado por ordem do Imperador, tendo-se mesmo
discutido se não seria preferível dar por findos os meus dias na terra,
executando-me publicamente. Alguém houve no entanto, que por temer um
levantamento, aconselhasse o Imperador a encarcerar-me indefinidamente, e, foi
isso que aconteceu. Enfiaram-me num cárcere e deitaram a chave ao Tibre.
Esses tempos de prisão terão
sido dos melhores da minha existência e ainda me recordo deles com grande
nostalgia. Pude por fim repousar em recato, alhear-me do mundo, ter apesar da
privação da liberdade física, soltado o meu espírito, e isso afigurava tudo o
que eu sempre tinha querido da vida.
Entretanto a fama da minha
santidade continuava a crescer e nem a reclusão forçada impedia que me fossem
atribuídos milagres, de tal sorte que se viram compelidos a libertar-me e a
atribuir-me um bispado. Ou melhor a confirmar-me como bispo de Myra.
- Então e depois, como
começou a lenda?
- Bem, os meus últimos anos
foram tranquilos, sem nunca me libertar da fama de santo milagreiro, consegui
apesar de tudo uma certa placidez nos meus dias. Ia dando umas esmolas,
especialmente quando saía. Na minha ingenuidade oferecia algumas moedas a quem
se cruzava comigo e me reconhecia, para que a minha presença não fosse
denunciada. Mas saia-me tudo ao contrário e os beneficiários do meu gesto
agradeciam-me com tal impetuosidade que logo se juntava uma turba de
carenciados à minha volta a pedir auxílio, e não me deixavam enquanto não
satisfizesse todos os seus pedidos. Mas acostumei-me a isso e arranjei um
assistente parecido comigo que ficava no meio da maralha enquanto eu me
escapulia e ia à minha vida.
Entretanto faleci e fui
sepultado em Bari.
Finalmente a eternidade,
pensei eu invadido por um alívio benfazejo. Durante alguns séculos assim foi.
Quem simbolizava o Natal era Jesus, de forma bastante eficiente, diga-se em abono
da verdade, e as pessoas quase se tinham esquecido de mim.
Só que para mal dos meus
pecados, se é que os tive, alguém se lembrou de desenterrar a minha lenda, e
puseram-me a calcorrear o mundo na véspera de Natal, só para distribuir
presentes aos mais necessitados, e não satisfeitos com isso fui obrigado a
conduzir um veículo puxado por renas, imagine, eu que nunca vi tais bichos em
toda a minha vida.
Apesar de tudo nem era mau,
só tinha que trabalhar um dia no ano, e sempre ia acumulando uns créditos na
escala dos santos. Também era bom para a igreja, já que não expunha a imagem de
Cristo, reservada apenas para ocasiões especiais, além de que muita gente
lucrava com o negócio, e eu de forma indirecta também já que os beneficiados
contribuíam com a sua gratidão interessada para o crescimento do meu prestígio.
Até que os Estado-unidenses
se meteram ao barulho e no seu afã de controlar o negócio deram cabo da galinha
dos ovos de ouro.
É por isso que estou aqui.
- Desculpe mas não entendo,
aqui em Lisboa, em 2000 e… não vejo a ligação.
- Bom, e no entanto é
simples. Sabe que até aos anos trinta do sec. XX eu não me vestia com estas
farpelas ridículas, era até bastante discreto, vestia-me de castanho e as renas
eram silenciosas, deslizavam pelo céu a bem dizer. Até que um dia, alguém se
lembrou de fazer dinheiro à minha custa, então vestiram-me de encarnado e
afixaram milhares de cartazes pelo mundo inteiro comigo nestes preparos e ainda
por cima a beber um refrigerante gaseificado de cor castanha…
Associaram-me a uma bebida!
Foi o primeiro passo, a partir daí todos se sentiram no direito de usar a minha
imagem para os mais diversos fins, e retorno nem vê-lo. Destruíram uma imagem
que levou séculos a criar sem nenhum pudor, e oi que é mais grave, é que o
prestígio que eu tinha acumulado junto dois meus colegas santos desapareceu num
ápice e comecei a ser alvo de chacota.
Fiquei sem prestígio, sem
crédito, de tal modo desmoralizado, que nem forças tive para reagir quando
começaram a contratar qualquer um para me personificar, uma tragédia.
Mesmo assim continuei a
respeitar as minhas obrigações até que no ano passado quando sobrevoava Nova
Iorque e passava junto à estátua da Liberdade, algum iluminado me confundiu com
um terrorista islâmico, por causa das barbas e do veículo um pouco rudimentar
que eu conduzia há séculos sem nunca ter tido um acidente, e pimba, dispararam
sobre mim e abateram-me. Caí no Hudson e as minhas renas coitadas, afogaram-se.
Fiquei privado de exercer as
minhas funções e resolvi lutar pelos meus direitos. Vou exigir todos os
direitos de autor e correlativos referentes aos últimos mil e quinhentos anos.
- Mas porquê em Lisboa.
- Por ser mais fácil, pelo
menos era o que eu julgava. Vocês tinham fama de ser os últimos a acreditar no
Pai Natal.
Mas pelos visto enganei-me.
Dito isto, levantou-se da
mesa e partiu em direcção ao pôr-do-sol, mas a pé, porque as renas já eram.
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