sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Esclarecimento de S. Nicolau



Há uns dias atrás, fui até à Sociedade Portuguesa de Autores para resolver uns pequenos problemas de carácter pessoal. Lá chegado, deparei-me com um grande burburinho causado por uma figura estranha.
Um homenzarrão já entrado na idade, envergando um fato vermelho, debruado com umas peles falsas de cor branca e com um gorro a condizer enterrado até às orelhas. Para acentuar o bizarro, falava num tom intenso de trombone amachucado e a sua boca mais parecia a entrada de uma gruta nos Himalaias já que estava quase tapada por uma imensa e espessa barba branca que lhe chegava até ao peito, morrendo num estômago redondo como uma abóbora menina.
- Quem é a figura? Indaguei ao recepcionista, que já estava mais transtornado do que um peru na véspera de Natal.
- E eu sei lá quem é o cromo…
Só sei que chegou aqui aos berros, a dizer que é o Pai Natal e veio receber os direitos que lhe são devidos pela utilização continuada e abusiva da sua imagem de marca, imagine!
- É mesmo isso!!!  Gritou o homem.
- Chame lá alguém que resolva o problema, e rápido que eu não tenho o dia todo…
-Eu chamo mas é a polícia, se você não desaparecer daqui.
Como sou uma alma compassiva e previdente, antevendo uma sessão de pugilato, convidei o excêntrico a beber um café e conversar um bocado, no intuito de o acalmar. Como ele aceitou, lá fomos nós até uma cafetaria em frente da SPA, e sentados a uma mesa fomos desfiando conversa. Bem interessante diga-se de passagem.
Este é sem dúvida um caso em que as aparências não iludem.
- Oh homem, você parece mesmo o Pai Natal, vestido dessa maneira…
- Mas eu sou o Pai Natal
-Desculpe mas não acredito, aliás, nem sequer acredito que o Pai Natal exista, quanto mais tê-lo por aí nas ruas com uma crise de mau feitio.
- Mau feitio diz o meu caro amigo, mas se imaginasse as atribulações por que tenho passado, acabaria por me dar razão.
- Tem de concordar que para um nórdico, perde as estribeiras muito facilmente…
- E quem lhe disse que eu sou nórdico?
- É o que consta.
- Pois consta! Mas não corresponde à verdade.
Eu nasci em Lycia, na Ásia Menor, hoje seria um turco de nascimento, e fui bispo de Myra, também na actual Turquia, como vê não tenho nada de nórdico.
- Mas então de onde surge a lenda?
- Sabe, eu era uma pessoa muito abastada, e gostava de ajudar. Um vizinho meu, bastante pobre, tinha três filhas que, devido à fome que passavam começaram a recorrer à prostituição para se sustentar e à família. Eram tão solicitadas que era um desassossego à porta da sua casa e da minha, foi então que decidi atirar para dentro da casa delas, um saco cheio de moedas de ouro na esperança que elas com aquele dinheiro assentassem e foi o que aconteceu, só que alguém me viu atirar o dinheiro e a partir daí fiquei com fama de santo e nunca mais tive sossego. Tive mesmo de me ir embora.
Neste ponto o meu interlocutor olhou para o copo de cerveja já vazio e eu, como a sua história começava a interessar, apressei-me a pagar mais uma rodada.
Depois de ter bebido a sua imperial de um trago, lá prosseguiu a sua narrativa já bastante mais animado.
- Como ia dizendo, parti da minha terra, um bocado a contra gosto, diga-se de passagem.
Quando cheguei a Bizâncio a fama de generoso milagreiro precedia-me, de tal sorte que em qualquer lugar em que parasse juntava-se uma pequena multidão a suplicar ajuda, e, para conseguir alguma tranquilidade ia fazendo o que podia.
Um belo dia, num caminho secundário, escolhido na esperança vã de não ser incomodado, deparei-me com três rapazes prostrados, mortos, pelo menos aparentemente, e um homem atlético com um pau na mão, a observá-los com um ar desesperado. Quando lhe perguntei o que tinha sucedido, disse-me que eram seus aprendizes e que num acesso de fúria os tinha morto à paulada. Fiquei horrorizado com tamanha barbaridade e, logo ali o invectivei enquanto lhe chamava a atenção para o grande pecado que tinha cometido. Foi então que o bruto me reconheceu, pedindo-me de joelhos e mãos postas que os ressuscitasse e que, se eu obrasse tal prodígio, ele se converteria à minha fé e jamais atentaria contra a vida de alguém.
Tentei explicar-lhe que tal não era possível, que só Deus decide da vida ou da morte de cada um, e acto contínuo debrucei-me sobre os corpos para os observar melhor. Imagine o meu espanto quando os rapazes se ergueram ainda aparentemente  atordoados da experiência do além e me agradeceram de modo efusivo ter-lhes restituído a vida. O pobre homem, largou de imediato em desfilada em direcção ao povoado, a gritar que Nicolau tinha operado mais um milagre, quanto aos moços, esses assim que o viram longe, largaram numa galhofa desabrida, vangloriando-se da partida que tinham pregado ao infeliz, já que apenas se tinham fingido de mortos para evitar uma surra maior.
Fiquei furioso e resolvi aplicar-lhes um correctivo que jamais esquecessem, dei-lhes então a escolher entre regressar à sua aldeia e contar toda a verdade, ou seguirem viagem comigo como meus discípulos, sujeitando-se a uma existência ascética e não isenta de perigos, tal como a minha.
Para mal dos meus pecados aceitaram seguir-me e lá fomos os quatro, estrada fora, intentando chegar a Roma que era ainda a grande urbe do Império para nos fixarmos por lá numa existência pacata e sobretudo anónima, esperança vã, como mais adiante verá.
Entretanto, já a fama do pretenso milagre correra mundo e por onde passássemos uma multidão de famintos e desesperados se juntava a nós formando um estranho cortejo de párias e deserdados da fortuna, muitos deles sem escrúpulos, tendo como único fito aproveitar-se de minha fama e da ingenuidade dos demais. Entre esses, os primeiros eram sem dúvida os meus três discípulos, se assim lhes posso chamar, que em meu nome prometiam mundos e fundos e a salvação eterna, em troca de inúmeros e indizíveis favores. Apesar de tudo a minha fama de santo homem ia aumentando e com ela o número dos meus seguidores.
O fenómeno assumiu proporções tais, que me vi perseguido e capturado por ordem do Imperador, tendo-se mesmo discutido se não seria preferível dar por findos os meus dias na terra, executando-me publicamente. Alguém houve no entanto, que por temer um levantamento, aconselhasse o Imperador a encarcerar-me indefinidamente, e, foi isso que aconteceu. Enfiaram-me num cárcere e deitaram a chave ao Tibre.
Esses tempos de prisão terão sido dos melhores da minha existência e ainda me recordo deles com grande nostalgia. Pude por fim repousar em recato, alhear-me do mundo, ter apesar da privação da liberdade física, soltado o meu espírito, e isso afigurava tudo o que eu sempre tinha querido da vida.
Entretanto a fama da minha santidade continuava a crescer e nem a reclusão forçada impedia que me fossem atribuídos milagres, de tal sorte que se viram compelidos a libertar-me e a atribuir-me um bispado. Ou melhor a confirmar-me como bispo de Myra.
- Então e depois, como começou a lenda?
- Bem, os meus últimos anos foram tranquilos, sem nunca me libertar da fama de santo milagreiro, consegui apesar de tudo uma certa placidez nos meus dias. Ia dando umas esmolas, especialmente quando saía. Na minha ingenuidade oferecia algumas moedas a quem se cruzava comigo e me reconhecia, para que a minha presença não fosse denunciada. Mas saia-me tudo ao contrário e os beneficiários do meu gesto agradeciam-me com tal impetuosidade que logo se juntava uma turba de carenciados à minha volta a pedir auxílio, e não me deixavam enquanto não satisfizesse todos os seus pedidos. Mas acostumei-me a isso e arranjei um assistente parecido comigo que ficava no meio da maralha enquanto eu me escapulia e ia à minha vida.
Entretanto faleci e fui sepultado em Bari.
Finalmente a eternidade, pensei eu invadido por um alívio benfazejo. Durante alguns séculos assim foi. Quem simbolizava o Natal era Jesus, de forma bastante eficiente, diga-se em abono da verdade, e as pessoas quase se tinham esquecido de mim.
Só que para mal dos meus pecados, se é que os tive, alguém se lembrou de desenterrar a minha lenda, e puseram-me a calcorrear o mundo na véspera de Natal, só para distribuir presentes aos mais necessitados, e não satisfeitos com isso fui obrigado a conduzir um veículo puxado por renas, imagine, eu que nunca vi tais bichos em toda a minha vida.
Apesar de tudo nem era mau, só tinha que trabalhar um dia no ano, e sempre ia acumulando uns créditos na escala dos santos. Também era bom para a igreja, já que não expunha a imagem de Cristo, reservada apenas para ocasiões especiais, além de que muita gente lucrava com o negócio, e eu de forma indirecta também já que os beneficiados contribuíam com a sua gratidão interessada para o crescimento do meu prestígio.
Até que os Estado-unidenses se meteram ao barulho e no seu afã de controlar o negócio deram cabo da galinha dos ovos de ouro.
É por isso que estou aqui.
- Desculpe mas não entendo, aqui em Lisboa, em 2000 e… não vejo a ligação.
- Bom, e no entanto é simples. Sabe que até aos anos trinta do sec. XX eu não me vestia com estas farpelas ridículas, era até bastante discreto, vestia-me de castanho e as renas eram silenciosas, deslizavam pelo céu a bem dizer. Até que um dia, alguém se lembrou de fazer dinheiro à minha custa, então vestiram-me de encarnado e afixaram milhares de cartazes pelo mundo inteiro comigo nestes preparos e ainda por cima a beber um refrigerante gaseificado de cor castanha…
Associaram-me a uma bebida! Foi o primeiro passo, a partir daí todos se sentiram no direito de usar a minha imagem para os mais diversos fins, e retorno nem vê-lo. Destruíram uma imagem que levou séculos a criar sem nenhum pudor, e oi que é mais grave, é que o prestígio que eu tinha acumulado junto dois meus colegas santos desapareceu num ápice e comecei a ser alvo de chacota.
Fiquei sem prestígio, sem crédito, de tal modo desmoralizado, que nem forças tive para reagir quando começaram a contratar qualquer um para me personificar, uma tragédia.
Mesmo assim continuei a respeitar as minhas obrigações até que no ano passado quando sobrevoava Nova Iorque e passava junto à estátua da Liberdade, algum iluminado me confundiu com um terrorista islâmico, por causa das barbas e do veículo um pouco rudimentar que eu conduzia há séculos sem nunca ter tido um acidente, e pimba, dispararam sobre mim e abateram-me. Caí no Hudson e as minhas renas coitadas, afogaram-se.
Fiquei privado de exercer as minhas funções e resolvi lutar pelos meus direitos. Vou exigir todos os direitos de autor e correlativos referentes aos últimos mil e quinhentos anos.
- Mas porquê em Lisboa.
- Por ser mais fácil, pelo menos era o que eu julgava. Vocês tinham fama de ser os últimos a acreditar no Pai Natal.
Mas pelos visto enganei-me.
Dito isto, levantou-se da mesa e partiu em direcção ao pôr-do-sol, mas a pé, porque as renas já eram.






1 comentário: