sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Tarot de Cavaco.



Cavaco Silva é bem o produto do meio em que foi criado. Nasceu e cresceu no seio de uma família da pequena burguesia rural, num Algarve nada cosmopolita.
Cavaco Silva é o filho genuíno do Deus, Pátria, Família, fundamento doutrinário do Estado Novo, e nem a formação académica, nem o mundo que conheceu posteriormente, lhe abriram novos horizontes, ele não cresceu para trilhar os caminhos que a inteligência e risco de inovação a ela associado comportam. Cavaco cresceu para subir na vida, tal como o seu pai o tinha feito, cresceu e formou-se para aumentar o pecúlio que lhe coube em sorte e para isso teve de estudar, porque nessa época o Algarve era o desterro.
O instrumento de Cavaco é a esperteza, não a inteligência, a sua força é o empenho oportunista que coloca nos seus actos. Ele não induz, antecipa apenas, as suas metas são concretas, o seu percurso, dolorosamente linear.
Não vejamos nele um homem de imagem reflectida, estudada ao pormenor, magnificamente representada como a de Mário Soares, magistral intérprete do Presidente/Rei. Cavaco apropriou-se do que lhe deram, e isso foi a imagem do homem terra a terra, realista e vertical, de contida timidez, com uma vontade férrea, alheio aos prazeres mundanos, a imagem de um homem do povo, de origens humildes e valores tradicionais, sem devaneios, sem outra aspiração que não seja cumprir abnegadamente o que dele se espera… o bom aluno.
Essa imagem pegou e deu os seus frutos, porque os portugueses foram formados nela, porque foi ela que durante anos a fio se vendeu nos manuais escolares, e nas fitas a preto e branco do nosso cinema, foi a imagem do futebol e do fado, do chapéu na mão, da modesta casinha, do jardim à beira mar plantado imune aos vícios da modernidade.
Cavaco foi a sopa no mel para todos os que abdicaram do seu destino, daqueles que cresceram no medo, dos crentes de que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar, mas foi também a oportunidade ansiada por todos os que queriam um regresso ao passado. Ele percebeu isso e não se fez rogado, entregou-se de corpo e alma ao seu papel e durante uns tempos agradou a uns e a outros, aos senhores e aos servos.
Foi cumprindo o desígnio de uns e lucrando com isso enquanto que ao povo vendia a imagem de homem probo. Bastou-lhe não falar, não abrir sequer a boca, porque falando se comprometeria.
Agora falou e sua natureza emergiu, porque sendo a sua carta igual à de muitos, o seu Tarot é avesso, é produto do contrário, Cavaco é o lado lunar, a imagem sem espelho, Cavaco é menos do que esperto. É tão-somente um produto do meio em que foi criado, a nação de Salazar…
(imagem daqui)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Brandos Costumes


Não é certo que uma mentira, mil vezes repetida, se transforme em verdade. Como não é certo que sejamos um povo de brandos costumes, só porque essa efabulação é conveniente aos transitórios ocupantes do poder.
Deu jeito ao Estado Novo, dá agora jeito aos seus descendentes.
Imagino as nossas hordas medievais, nas suas sortidas pelo sul, a distribuírem abraços e beijos enquanto com meiguice expulsavam aqueles que há séculos o habitavam. Contemplo com um ternurento e cúmplice olhar as conquistas do norte de África e o comércio de escravos na Guiné. Um sopro quente de complacência invade-me a alma ao recordar a epopeia de Afonso de Albuquerque e de outros Vice-reis, ou o esforço evangelizador em terras de Vera-Cruz.
Sinto inconfessável nostalgia, quando perpasso os olhos pelos registos da sã camaradagem dos cárceres da Inquisição e das coloridas festas dos autos de fé.
Sorrio ao consultar os sãos debates das guerras liberais, ou da genuína e doce afectividade de Maria da Fonte.
Orgulho-me do meu país pela política de integração compassiva de Mouzinho, pelo desvelo empregue nas roças de São Tomé, pela sublime delicadeza de João Franco, pela homenagem carbonária a D. Carlos, pela visão pacifista de Afonso Costa na tragédia da Primeira Grande Guerra.
Vejo Sidónio no Paraíso à direita de Deus Pai, sentado ao lado de Ghandi.
Emociono-me com a PVDE, depois PIDE, mais tarde DGS e o seu esforço tranquilo para preservar os valores da Igreja e da Pátria, arrepio-me com a Mocidade Portuguesa fardada e garbosa, e com a Legião Portuguesa, com a dignidade de Salazar ao conceder a Aristides Sousa Mendes a justa reforma por ter salvo milhares de vidas das garras nazis.
E o que dizer da acção pacificadora dos nossos exércitos em África? Da forma desinteressada com que os nossos jovens se imolavam numa guerra imposta pelos violentos independentistas? No modo paternal com que Salazar proferiu a célebre frase, “para Angola já e em força”? Com essa cálida força do amor fraterno que nos levou a libertar milhares de patriotas do seu sofrimento?
Houve de facto uma excepção aos nossos brandos costumes… foi a inusitada violência dos cravos. Mas felizmente já nos recompusemos.
Já temos de novo quem olhe por nós e nos imponha limites, já temos de novo uma polícia de proximidade e serviços de informação que sabem ouvir a voz do dono, já temos de pagar de novo a saúde e a escola e os transportes e a electricidade e a água, já temos de novo patrões compassivos que nos indicam o caminho da felicidade, já temos até, pasme-se, um parlamento finalmente posto no lugar e um Presidente ausente, como um pai bíblico, sempre disposto a desculpar os pecadilhos dos filhos dilectos.
Não sei é se os nossos brandos costumes darão para tanto…
De qualquer das formas, quero aqui deixar uma proposta ao nosso ministro dos Negócios Estrangeiros. Quando arranjar tempo dê uma saltada a Cabo Verde e proponha-lhes transformar o Tarrafal num museu. Seria o “Museu dos Brandos Costumes”, era bonito e o povo ficava feliz…
(imagem daqui)

domingo, 15 de janeiro de 2012

são tão lindas as borboletas


todos os dias limpo o cu a borboletas agarro-as às mãos cheias para não sujar os dedos e resulta

compro-as em pacotes de cinco mil mais quinhentas grátis

embalagem poupança importadas da polinésia

são as mais macias e não provocam alergias

cada vez há menos flores na polinésia mas estou-me nas tintas

sou burguês do capitalismo ocidental e penso

todos os dias limpo o cu e penso inquieta-me o sentido da vida

fico nervoso já nem deus me descansa

quero renegociar o peso da consciência que todos os dias se multiplica

nem tudo é culpa minha quero uma auditoria

à noite antes de dormir vou à casa de banho e penso em mim e na vida

olho-me por dentro e vejo uma praga em expansão no sótão dos macaquinhos

vejo os mortos do meu conforto que ressuscitam quando querem nem esperam pela páscoa

e é contra eles que luto neste momento mais íntimo

então num último esforço expulso o último tormento

descolo o rabo da sanita aliviado como novo leve e descontraído

limpo o cu dou meia volta e olho para baixo gosto sempre de ver o que faço

e são tão lindas as borboletas

De Que Lado Estás Tu?

sábado, 14 de janeiro de 2012

Piolheira Leite



Os liberais ou neoliberais ou tecnoliberais ou qualquer coisa liberais, não são políticos, são negociantes e precisamente por isso são perigosos. Não são gente de fé, são gente de fezadas.
Tudo neles, depois de despidas as vestes retóricas, se resume a uma visão de merceeiro, a um deve/haver, em que os réditos lhes pertencem e os débitos são descarregados nas contas dos outros. Convém frisar que os outros não são gente, são clientes, entidades, bolsas e bolsos que se esvaziam na razão direta da sua utilidade.
Para eles a dignidade não é um valor em si mesma, é isso sim, uma escala cuja medida é o dinheiro,  porque os clientes não se medem por valores absolutos, medem-se pelo poder de compra e, nesse contexto, uns terão direito a atendimento personalizado, outros ficam de fora à espera das sobras, que comprarão mediante as suas posses.
Não surpreende por isso que Manuela Ferreira Leite tenha proposto uma suspensão semestral da democracia; para ela não eram direitos que estavam em jogo, o objectivo era simples, pretendia apenas uma pausa para inventariar os stocks e adequar a estratégia ao que tinha disponível para colocar nas prateleiras. A seu ver a democracia não é uma questão de fé, apenas uma fezada, uma excelente oportunidade de crescimento gerada pelos efeitos de uma publicidade enganosa.
Como poderemos então estranhar que a dita senhora tenha defendido o pagamento integral da hemodiálise para pessoas com idade superior a setenta anos? Qual a utilidade desta gente? Não produzem riqueza, não compram, não são clientes, não estão cá a fazer nada!
Que morram então.
Aliás, se atentarmos nas listas de espera para cirurgias, ou para intervenções mais onerosas, veremos que estes cidadãos vivem calvários de anos, se analisarmos o fecho dos centros de saúde por exemplo, percebemos de imediato qual a faixa etária mais afectada. Manuela Ferreira Leite limitou-se a dar voz ao genocídio.
Quando vemos consagrado na Constituição, um Serviço Nacional de Saúde Universal e tendencialmente gratuito, percebemos logo que há ali alguma coisa a mais, uma contradição, uma sabotagem. O lógico seria retirar o tendencialmente, mandá-lo às urtigas. Em Portugal a tendência é sempre o declive. Tudo o que tende, tende a acabar.
O SNS deveria ser universal e gratuito. Para todos, ricos e pobres sem excepção, deveria mesmo ser gratuito para Manuela Ferreira Leite, tendo ela como tem, mais de setenta invernos.
Pagamos para isso, trabalhamos para isso, não temos de poupar para isso. A qualidade dos serviços prestados deveria ser generalizada e sem custos para os utentes. Se alguém quisesse um extra e não se importasse de pagar por isso, esse upgrade, digamos assim, deveria ser o hospital hotel, com lençóis de seda e pratos de porcelana, com Jarbas privativos, com arrastadeiras únicas, peças de design escatológico, suaves ao toque e odoríferas… Porque no que à saúde diz respeito, os hospitais não são hotéis, são a salvaguarda da nossa saúde, da nossa dignidade, da nossa democracia. Em suma os hospitais não são uma fezada.
Mas como diria o outro, isto é tudo uma piolheira…

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Da Estupidez enquanto forma de vida

" Ferreira Leite defende que doentes

com mais de 70 anos paguem hemodiálise"


Um exemplo da estupidez reinante. Esta...hum...senhora ??? saberá quanto custa um tratamento deste tipo?

Ou é apenas estúpida? ou senil?

Democracia Cebola




Sob o manto diáfano da democracia, a nudez crua do fascismo.
Temos uma democracia cebola, quando penetramos nela, choramos. Nem sabemos muito bem porquê, limitamo-nos a chorar, incomodados e indiferentes às lágrimas que correm abundantes.
Ficamos com os olhos de tal forma marejados, que deixamos de ver e acabamos por pelar a dita, com gestos mecânicos, repetidos, ignorantes do ardor que nos incomoda os olhos.
É assim a nossa democracia, um ardor de alma e algibeira.
Percorremos a cidadania como se fossemos amblíopes, às cabeçadas nos direitos, aos tropeções nos deveres.
Cortam-nos salários, esfregamos os olhos, desviam dinheiro público para a compra de submarinos, franzimos a testa, põem-nos a cofinanciar o Serviço Nacional de Saúde, espirramos, resgatam bancos falidos fraudulentamente com o nosso dinheiro, fungamos, reduzem-nos os benefícios sociais para os quais descontamos, fazemos um esgar, aconselham-nos a emigração, fechamos os olhos…
Temos sempre a possibilidade de parar, lavar a cara, olhar em volta, enfim reorganizar as coisas. Mas lá está a maldita cebola, a exalar os seus vapores ácidos, como que a dizer, se me queres comer, não tens outra opção senão descascar-me, penares até ao fim, não há outro modo… E nós insistimos. Deixamos de ver os transportes, a escola, os correios, a electricidade, o serviço público de televisão, a própria água e choramos, choramos muito.
Enquanto choramos os donos da cebola engordam e arranjam outras cebolas que teremos de pelar.
Dividem entre si o saque, pagam-se principescamente dos roubos que cometem e nós espirramos, e choramos e fungamos e batemos com as mãos nos olhos e descascamos, descascamos, até eles se fartarem dos nossos serviços e encontrarem outra democracia cebola para explorarem.
 (Imagem daqui)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

CRUZES CREDO



quais sorrisos qual alegria volto finalmente para junto dos meus

das minhas raízes submersas do meu pulsar essencial que é a mágoa

desculpa família perdão eterna família de olhos cegos e assustados

volto para o teu regaço a passos largos depois do desvario da liberdade

depois do atrevimento de pisar o chão do olimpo e do trabalho que isso dá

sossego finalmente e de boa vontade abandono a aventura descabida de ser dono de mim

desisto porque estou desmotivado entristeci-me

amanhã nunca será outro dia então regresso entrego as minhas armas

por favor ainda sou vosso filho deixem-me entrar na fotografia

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

"De Janeiro a Janeiro......"


Há merceeiros...e merceeiros...na maioria dos casos, os que conheci tinham um livrinho onde anotavam os fiados que durante o mês iam concedendo. Sim. É que se assim não fosse, a maioria não comia.
As mercearias fecharam e os merceeiros acabaram. Agora temos moralistas donos de supermercados que, imaginem os leitores, abrem bancos alimentares para ajudarem os seus próprios funcionários. Não seria mais simples aumentar os ordenados?
Mas estes empresários vão mais longe.
Dantes os merceeiros não tinham opinião política, ou pelos menos não a impingiam aos seus clientes...porque "business is business".
Hoje, fazem fundações, dirigidas por barretes, para propagandearem as suas agendas neoconservadoras.
Hoje, os merceeiros não fogem ao fisco. São empresários. Um empresário faz planeamento fiscal.
Os merceeiros de hoje enchem os canais de televisão com os seus funcionários.. o rapaz dos Negócios, os ferreiras, as entrevistas de rua escolhidas a dedo...
Hoje, os merceeiros vão para a Holanda, ou para onde calhar, depois de destilarem uma verborreia moralista sobre o país que lhes dá de comer.
Hoje, os merceeiros não vão pagar IRS sobre os dividendos que a sucursal holandesa distribuir, se esta os não distribuir em Portugal.
Estes merceeiros são os donos de Portugal.
Estes merceeiros são o problema de Portugal.

P.S.Aguardam-se os sábios comentários do barrete sociólogo...bem como, as pias explicações do, calculo que será esse, relvas sobre o assunto. Claro, os liberais não se metem nos negócios privados, embora vendam a empresa monopolista que fornece a energia que alimenta a escrita deste texto ao Comité Central do Partido Comunista Chinês...business is business...

Uma História de Sucesso



O João vive na rua, numa cidade grande, já teve emprego, já teve família, casa, carro, conta no banco.
Agora não tem nada disso; tem uns sacos de plástico com duas mudas de roupa e umas mantas, uns cartões canelados que fazem de cama, arrumados num vão de escada onde dorme, a que ironicamente apelida de casa, tem um cão preso por um cordel à laia de trela, a quem se refere como o parente próximo, às vezes tem fome e, tem sempre muita sede.
O João já teve amigos, agora tem companheiros, na rua não há espaço para grandes amizades.
Já teve saúde, agora tem doenças várias, tantas, que já nem liga, sente-se mal bebe um copo e a coisa passa; só vai às urgências hospitalares quando o frio aperta e precisa de aquecer, mas nunca passa da sala de espera.
O João já viajou, agora não. Agora dá umas voltas pelo bairro de onde quase nunca sai, as maiores distâncias calcorreia-as para se encontrar com os voluntários de alguma obra assistencial que distribuem sopa e alguns géneros sem fazer perguntas, alguns conhecem-no e tratam-no pelo nome, outros ainda mais raros até o chamam Sr. João.
O João já foi respeitado, agora nem se lembra que esse conceito existe.
O João já dominou outras línguas, agora expressa-se num português minimalista; não precisa de mais.
Já teve identificação, carta de condução, cartões de crédito e de débito, cartões multicoloridos e inúteis de inúmeras associações etc.
Agora não tem nada disso os prazos expiraram e ele não os renovou; também para quê?
O único plástico que possui são os sacos que lhe servem de alforges.
O João não existe em teoria, apenas na prática.
Apesar de tudo, o João já teve os seus minutos de fama, foi num Natal, quando se deslocou a uma tenda montada pela Câmara para comer uma posta de bacalhau e receber mantas novas, estavam lá as televisões a acompanhar um ministro qualquer e entrevistaram-no. “Sr. João um sem abrigo da cidade, que nesta data única veio até nós, para que celebremos em conjunto uma ocasião tão especial”. Foi mais ou menos assim que o apresentaram, depois fizeram-lhe umas perguntas e foram para outra tenda, nem sequer se despediram.
O João não tem telemóvel, nem usa as cabines telefónicas do bairro se por acaso precisa de contactar alguém, a maioria das cabines exigem um cartão pré comprado, ou fichas, e ele não tem fundo de maneio para esses luxos.
O João não está inscrito na segurança social, vive do que lhe dão e os esmoleres não passam recibos.
O João bebe, sempre bebeu, mesmo na outra vida, acha mesmo que é a bebida a fonte de todos os seus problemas. Quando bebe, o que quer que venha à rede é peixe, fica horas sentado a contemplar o vazio.
O João vai inevitavelmente morrer em breve, no meio da rua, atropelado, ou cirrótico, ou enfartado…
Vai ser recolhido por uma ambulância, que o vai levar para um hospital central, lá chegado declara-se o óbito, em seguida leva-se o corpo que já foi João para a medicina legal para ser identificado, o que não vai acontecer, por lá fica, ninguém o vai reclamar…
O cão do João irá correr atrás da ambulância, chegará ao hospital e ficará à porta, à espera…
(Escrevi este texto há já algum tempo)

ZEN CRISE



quando eu nasci havia mais peixes no mar

havia mais beijos para dar

respirava-se mais devagar

agora vejo a minha vida que me vê assustado

o que é que eu digo o que é que eu faço

quando eu nasci havia mais punhos no ar

havia gente a cantar

convertias-me só com o olhar

agora dou por mim duro como um penedo

o que é que eu fiz o que é que eu disse

sei que nasci quando havia mais certezas esdrúxulas

e mais sonhos simétricos

a eterna felicidade científica

e afinal quem não é uma brisa de outono

o que é que ele disse o que é que disseste

fica tranquilo eu não digo nada e as coisas que persistem

nunca te enganam porque és tu que te enganas

e as coisas não existem

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Os Malditos



Eles, os que habitam torres de marfim e vêem o mundo do alto, aqueles cujas mãos servem apenas para recolher o que nos esbulham. Que em lugar de dedos têm garras, que não sentem, que não têm honra, que julgam que a dignidade se compra numa bolsa de valores.
Eles, os que não têm cheiro, nem afectos, que não têm nem mãe, nem pai, que não têm pátria, que não amam, que se reproduzem porque tem de ser.
Eles, os que temem Deus, não porque crêem, mas porque a caridade é um negócio e o paraíso o seu mercado.
Eles que compram poder, que comem poder, que vivem do poder, que têm nas veias fluxos e refluxos do sangue que o seu poder usurpa.
Eles, os que têm ao seu dispor exércitos de chacais e de hienas e de pulgas solícitas e saltitantes, eles, que têm ao seu dispor os executores do medo.
Esses!
Olham para nós e vêem pontos minúsculos, sobre a terra, e nessa distância irreal que a sua arrogância inventa, julgam que nos podem esmagar e usar, que nos podem sequestrar os sonhos, porque para eles somos nada.
Mas como se enganam!
Porque nós somos tudo, somos nós que vivemos, que temos dúvidas, somos nós que criamos vida porque amamos os nossos filhos como se fossem os únicos, porque lutamos, porque foi à nossa custa que as suas torres de vento e de nada se ergueram, porque foram a nossa memória e o nosso desejo, que construíram o mundo.
Nós somos os deuses, somos nós os espoliados, os sofredores, os homens e as mulheres de carne e osso que fazemos a vida, e vai ser do nosso sopro,  com o ar que se liberta das asas de uma borboleta e se transforma em tufão que derruiremos as suas torres, que traremos de volta a magnífica superioridade das nossas imperfeições, o perpétuo movimento da condição humana, o desígnio da liberdade e da igualdade e da fraternidade.
Nós somos o coração dos sonhos.