quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Uma História de Sucesso



O João vive na rua, numa cidade grande, já teve emprego, já teve família, casa, carro, conta no banco.
Agora não tem nada disso; tem uns sacos de plástico com duas mudas de roupa e umas mantas, uns cartões canelados que fazem de cama, arrumados num vão de escada onde dorme, a que ironicamente apelida de casa, tem um cão preso por um cordel à laia de trela, a quem se refere como o parente próximo, às vezes tem fome e, tem sempre muita sede.
O João já teve amigos, agora tem companheiros, na rua não há espaço para grandes amizades.
Já teve saúde, agora tem doenças várias, tantas, que já nem liga, sente-se mal bebe um copo e a coisa passa; só vai às urgências hospitalares quando o frio aperta e precisa de aquecer, mas nunca passa da sala de espera.
O João já viajou, agora não. Agora dá umas voltas pelo bairro de onde quase nunca sai, as maiores distâncias calcorreia-as para se encontrar com os voluntários de alguma obra assistencial que distribuem sopa e alguns géneros sem fazer perguntas, alguns conhecem-no e tratam-no pelo nome, outros ainda mais raros até o chamam Sr. João.
O João já foi respeitado, agora nem se lembra que esse conceito existe.
O João já dominou outras línguas, agora expressa-se num português minimalista; não precisa de mais.
Já teve identificação, carta de condução, cartões de crédito e de débito, cartões multicoloridos e inúteis de inúmeras associações etc.
Agora não tem nada disso os prazos expiraram e ele não os renovou; também para quê?
O único plástico que possui são os sacos que lhe servem de alforges.
O João não existe em teoria, apenas na prática.
Apesar de tudo, o João já teve os seus minutos de fama, foi num Natal, quando se deslocou a uma tenda montada pela Câmara para comer uma posta de bacalhau e receber mantas novas, estavam lá as televisões a acompanhar um ministro qualquer e entrevistaram-no. “Sr. João um sem abrigo da cidade, que nesta data única veio até nós, para que celebremos em conjunto uma ocasião tão especial”. Foi mais ou menos assim que o apresentaram, depois fizeram-lhe umas perguntas e foram para outra tenda, nem sequer se despediram.
O João não tem telemóvel, nem usa as cabines telefónicas do bairro se por acaso precisa de contactar alguém, a maioria das cabines exigem um cartão pré comprado, ou fichas, e ele não tem fundo de maneio para esses luxos.
O João não está inscrito na segurança social, vive do que lhe dão e os esmoleres não passam recibos.
O João bebe, sempre bebeu, mesmo na outra vida, acha mesmo que é a bebida a fonte de todos os seus problemas. Quando bebe, o que quer que venha à rede é peixe, fica horas sentado a contemplar o vazio.
O João vai inevitavelmente morrer em breve, no meio da rua, atropelado, ou cirrótico, ou enfartado…
Vai ser recolhido por uma ambulância, que o vai levar para um hospital central, lá chegado declara-se o óbito, em seguida leva-se o corpo que já foi João para a medicina legal para ser identificado, o que não vai acontecer, por lá fica, ninguém o vai reclamar…
O cão do João irá correr atrás da ambulância, chegará ao hospital e ficará à porta, à espera…
(Escrevi este texto há já algum tempo)

1 comentário:

  1. e é provavelmente um dos melhores textos que li ultimamente por esta blogosfera adentro...

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