Um Cântico para Leibowitz - Walter M. Miller Jr




 

Se não fosse aquele peregrino que inopinadamente lhe apareceu em pleno deserto, onde prosseguia o jejum ritual da Quaresma, o frei Francis Gerald, do Utah, com certeza nunca teria descoberto o documento sagrado. Era aliás a primeira vez que tinha oportunidade de ver um peregrino com uma tanga a envolvê-lo, de acordo com a melhor tradição, mas um simples olhar bastou para convencer o jovem monge de que a personagem era autêntica. O peregrino era um velho desengonçado que coxeava apoiando-se ao clássico bordão; sua barba selvagem estava manchada de amarelo à volta do queixo, e ele transportava um pequeno odre ao ombro. Com a cabeça coberta por um amplo chapéu e sandálias nos pés, tinha os rins apertados por um pedaço de saco, bastante sujo e esfarrapado. Era o único vestuário que usava, e assobiava (desafinado) enquanto descia a pista pedregosa do norte. Parecia dirigir-se para a abadia dos frades de Leibowitz, situada a uma dezena de quilómetros para o sul.
Assim que avistou o jovem monge em seu deserto de pedras, o peregrino cessou de assobiar e começou a examiná-lo com curiosidade. Quanto ao frei Francis, absteve-se de quebrar a lei do silêncio imposta pela ordem para os dias de jejum; afastando rapidamente o olhar, continuou a trabalhar, trabalho que consistia em erguer uma muralha de pedras grandes para proteger dos lobos a sua provisória habitação.
Um pouco enfraquecido após dez dias de um regime exclusivamente composto por bagas de cactos, o jovem monge sentia a cabeça girar enquanto trabalhava. Há já algum tempo que a paisagem parecia bailar-lhe diante dos olhos e via manchas negras flutuarem à sua volta; por isso, a princípio, perguntou a si próprio se aquela barbuda aparição não seria uma simples miragem provocada pela fome... Mas o peregrino não tardou em dissipar-lhe as dúvidas:
Olá alIay! - Exclamou alegremente, numa voz agradável e melodiosa.
Visto que a lei do silêncio o impedia de responder, o jovem monge limitou-se esboçar um sorriso, sem erguer o rosto.
- Este caminho vai realmente para a abadia? - Continuou então o errante.
Sempre sem levantar os olhos, o noviço acenou afirmativamente com a cabeça, depois inclinou-se para apanhar um pedaço de pedra branca, semelhante a giz.
- O que faz aqui no meio de todos esses rochedos? - Continuou o peregrino aproximando-se dele.
Rapidamente, o frei Francis ajoelhou-se para riscar sobre uma grande pedra lisa as palavras "solidão e silêncio". Se soubesse ler o que aliás era pouco provável, considerando as estatísticas -, o peregrino poderia compreender que a sua simples presença era um motivo de pecado para o penitente e com certeza se retiraria sem mais insistir.
- Ah, bom! - Disse o barbudo.
Ficou um instante imóvel, passeando o olhar em volta, depois bateu com o cordão numa grande rocha:
- Olhe - disse -, aqui está uma que lhe convinha... Então boa sorte, e oxalá encontre a Voz que procura!
De momento, o frei Francis não compreendeu o que o estrangeiro quisera dizer com "Voz" com V maiúsculo; pensou simplesmente que o velho o tomara por um surdo-mudo. Depois de lançar um rápido olhar ao peregrino que se afastava assobiando novamente, apressou-se a dedicar-lhe uma bênção silenciosa para que fizesse boa viagem, depois regressou ao seu trabalho de pedreiro, desejoso de construir um recinto fechado em forma de caixão no qual se pudesse estender para dormir sem que sua carne servisse de isca para os lobos famintos.
Passou-lhe por cima da cabeça um celestial rebanho de cúmulos: depois de induzirem cruelmente o deserto em tentação, aquelas nuvens preparavam-se agora para derramar sobre as montanhas a sua húmida bênção... Essa passagem refrescou por momentos o jovem monge protegendo-o dos escaldantes raios de sol, e ele se aproveitou disso para intensificar seu trabalho, sublinhando cada gesto com orações segredadas para confirmar a verdadeira vocação - pois era esse, na verdade, o fim que pretendia atingir durante o período de jejum no deserto.
Finalmente, o frei Francis pegou na grande pedra que o peregrino lhe indicara... mas as boas cores que adquirira ao cumprir seu penoso trabalho abandonaram-lhe o rosto e deixou cair precipitadamente o pedaço de rocha, como se tivesse tocado numa serpente.
Jazia a seus pés uma caixa de lata enferrujada, parcialmente oculta pelas pedras...
Levado pela curiosidade, o jovem monge quis imediatamente pegá-Ia, mas primeiro recuou um passo e benzeu-se rapidamente, resmungando em latim, após o que, tranqüilizado, não receou dirigir-se à própria lata.
Vade retro, Satanas! - Ordenou-lhe, ameaçando-a com o pesado crucifixo de seu rosário. - Desaparece, vil Sedutor!
Tirando dissimuladamente de sob a túnica um minúsculo hissope, borrifou a lata com água benta, para o que desse e viesse. - Se és uma criatura diabólica, desaparece!
Mas a caixa não deu provas de querer desaparecer, nem de explodir, nem sequer de se encarquilhar num odor de enxofre... Contentou-se em continuar tranquilamente em seu lugar, deixando ao vento do deserto o cuidado de fazer evaporar as gotas santificadoras que a cobriam.
- Assim seja! - Exclamou então o frade, ajoelhando-se para pegar no objecto.
Sentado no meio das pedras, passou mais de uma hora martelando a caixa com uma grande pedra, a fim de abri-la. Enquanto se dedicava a essa tarefa, veio-lhe a ideia de que aquela relíquia arqueológica - pois era bem visível que disso se tratava - talvez fosse um sinal enviado pelo Céu para lhe indicar que a vocação lhe era concedida. No entanto, afastou imediatamente tal ideia, recordando-se a tempo de que o frei abade o pusera seriamente de sobreaviso contra qualquer revelação pessoal directa de carácter espectacular. Se deixara a abadia para cumprir no deserto aquele jejum de quarenta dias, reflectia, era justamente para que a penitência lhe proporcionasse uma inspiração vinda do Céu, a chamá-lo para as Ordens Sagradas. Não devia esperar ser testemunha de visões ou ouvir-se chamar por vozes celestiais: tais fenómenos apenas trairiam uma vã e estéril presunção. Inúmeros noviços tinham trazido de seu retiro no deserto abundantes histórias de presságios, de premonições e visões celestiais, motivo por que o frei abade adoptara uma política enérgica em face desses pretensos milagres. "O Vaticano é o único qualificado para se pronunciar sobre o assunto", resmungara, "e é necessário evitar interpretar como revelação divina o que não passa do resultado de uma insolação."
Apesar de tudo, no entanto, o frei Francis não podia impedir-se de manipular a velha caixa de metal com infinito respeito, enquanto a martelava o melhor que podia para abri-la...
Subitamente a caixa cedeu, espalhando seu conteúdo pelo chão, e o jovem religioso sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Ia-se-lhe revelar a própria Antiguidade! Apaixonado por arqueologia, tinha dificuldade em acreditar no que via e pensou de repente que o frei Jeris ia ficar doente de inveja - mas logo se censurou por esse pensamento pouco caridoso e começou a agradecer ao Céu que o gratificava com semelhante tesouro.
Tremendo de emoção, tocou cautelosamente nos objectos que a caixa continha, esforçando-se por classificá-los. Seus antigos estudos permitiram-lhe descobrir no meio do conjunto uma chave de parafusos - espécie de instrumento utilizado outrora para introduzir na madeira hastes de metal filetado - e uma espécie de pequena tesoura, de lâminas afiadas. Descobriu também uma ferramenta bizarra, composta por um cabo de madeira carunchosa e uma sólida haste de cobre à qual aderiam ainda alguns pedaços de chumbo derretido, mas não conseguiu identifica-la. A caixa continha ainda um pequeno rolo de fita negra e adesiva, muito deteriorada pelos séculos para que fosse possível saber do que se tratava, e inúmeros fragmentos de vidro e de metal, assim como diversos desses pequenos objectos tubulares com escovas de fios de ferro que os pagãos das montanhas consideravam amuletos, mas que certos arqueólogos supunham ser restos da lendária machina analytica, anterior ao Dilúvio de Chamas.
O frei Francis examinou cuidadosamente todos aqueles objectos antes de os colocar a seu lado sobre a grande pedra lisa; quanto aos documentos, resolveu examiná-los em último lugar. Como sempre, aliás, eram eles que constituíam a mais importante descoberta, tendo em conta o reduzido número de papéis que tinham escapado aos terríveis autos-de-fé ateados durante a Era da Simplificação por uma populaça ignorante e vingativa, que não receava destruir dessa forma os próprios textos sagrados.
A preciosa caixa continha dois desses inestimáveis papéis, assim como três pequenas folhas de notas manuscritas. Todos aqueles documentos veneráveis eram muito frágeis, ressequidos e quebradiços devido ao tempo; por isso o jovem monge pegou-os com toda a precaução, tendo tido o cuidado de protegê-los do vento com uma aba da túnica. Aliás, eram quase ininteligíveis e redigidos em inglês antediluviano, essa língua antiga que, como o latim, já não era utilizada actualmente, a não ser pelos monges e pelo ritual litúrgico. O frei Francis começou a decifrá-los lentamente, lendo as palavras de passagem sem lhes penetrar o verdadeiro sentido. Numa das pequenas folhas lia-se: "1 libra de salsicha, 1 lata de chucrute para Emma". A segunda folha dizia: "Pensar em ver a fórmula 1040 para declaração de impostos". Finalmente a terceira só continha números e uma longa adição, depois um número que manifestamente representava uma percentagem subtraída ao total precedente e seguida da palavra "Bolas!" Incapaz de compreender o que quer que fosse daqueles documentos, o monge contentou-se em verificar os cálculos e achou-os certos.
Dos outros dois papéis que a caixa continha, um, apertado em forma de pequeno rolo, ameaçava desfazer-se se se tentasse desenrolá-lo. O frei Francis só lhe conseguiu decifrar duas palavras: Aposta mútua" (1), e tornou a colocá-lo na caixa para o examinar mais tarde, depois de submetido a um tratamento conservador apropriado.
O segundo documento compunha-se de um grande papel dobrado várias vezes, e tão quebradiço nas dobras que o religioso teve de contentar-se em afastar cuidadosamente as pontas para lançar uma olhadela.
Era um plano, um emaranhado confuso de linhas brancas, traçadas sobre fundo azul!
Um novo arrepio percorreu a espinha do frei Francis: era um azul que ali estava - um desses documentos antigos e raríssimos que os arqueólogos tanto apreciavam e que os sábios e intérpretes especializados encontravam por vezes tanta dificuldade em decifrar!
Mas a inacreditável bênção que semelhante descoberta representava não se restringia a isso: entre as palavras traçadas num dos ângulos inferiores do documento, eis, com efeito, que o frei Francis descobre subitamente o próprio nome do fundador de sua ordem: o Bem-Aventurado Leibowitz em pessoa!
As mãos do jovem monge começaram a tremer tanto, em sua alegria, que correu o risco de rasgar o inestimável papel. As últimas palavras que o peregrino lhe dirigira voltaram-lhe então à memória: "Oxalá encontre a Voz que procura!" Era de fato uma voz que acabava de descobrir, uma voz com V maiúsculo, semelhante ao que formam as duas asas de uma pomba que do alto do firmamento mergulha na direcção da terra, um V maiúsculo como o de Vere dignum, ou Vidi aquam, um V majestoso e solene, como os que ornamentam as grandes páginas do Missal - em suma, um V como o de Vocação!
Após um último olhar ao papel azul para ter a certeza de que não sonhava, o religioso entoou as suas ações de graças: - Beahe Leibowitz, ora pro me... Sancte Leibowitz, exaudi me... - e esta última fórmula não deixava de revelar certa audácia, visto que o fundador da ordem ainda aguardava ser canonizado!
Esquecido das prescrições do abade, o frei Francis ergueu-se de um salto e investigou o horizonte do lado sul, na direção em que seguira o velho caminhante de tango de juta. Mas o peregrino há muito desaparecera... Era com certeza um anjo do Senhor, pensou o frei Francis e - quem sabe? - talvez mesmo o Bem-Aventurado Leibowitz em pessoa... Não lhe indicara ele o local onde descobrira o milagroso tesouro, aconselhando-o a deslocar determinada pedra no momento em que lhe dirigia proféticas despedidas?...
O jovem frade continuou mergulhado em suas exultantes reflexões até a hora em que o sol poente veio ensanguentar as montanhas, enquanto as sombras do crepúsculo o rodeavam. Só então a noite que se aproximava lhe interrompeu a meditação. Disse a si mesmo que a inestimável dádiva que acabava de receber certamente não o colocaria ao abrigo dos lobos, pelo que se apressou a terminar a muralha protetora. Depois, como as estrelas apareciam, reanimou o lume e juntou as pequenas bagas cor de violeta dos cactos, que constituíam sua refeição. Era este seu único alimento, à exceção da mão-cheia de trigo seco que um padre lhe levava todos os domingos. Por isso acontecia-lhe lançar um olhar ávido aos lagartos que percorriam os rochedos vizinhos - e seus sonhos eram frequentemente povoados de pesadelos gulosos.
Naquela noite, no entanto, a fome passara para o segundo plano de suas preocupações. O que teria desejado, antes de tudo, era dirigir-se a toda a pressa à abadia para participar aos seus irmãos o maravilhoso encontro que tivera e a milagrosa descoberta que fizera. Mas, evidentemente, era coisa impraticável. Quer tivesse ou não vocação, teria de permanecer ali até o fim da Quaresma e continuar a agir como se nada de extraordinário lhe tivesse acontecido.
"Há de se construir uma catedral neste local", pensou enquanto meditava junto ao fogo. E já a imaginação o fazia ver o majestoso edifício que surgiria das ruínas da antiga aldeia, com seus sinos altaneiros, que poderiam ser vistos de vários quilómetros ao redor.
Acabou por adormecer e, quando acordou, sobressaltado, só uns vagos tições ardiam ainda na fogueira quase extinta. Teve de súbito a sensação de que não estava só naquele deserto... Semicerrando os olhos, esforçou-se por atravessar a escuridão que o envolvia e foi então que distinguiu, atrás das últimas brasas de sua modesta fogueira, as pupilas de um lobo que brilhavam nas trevas. Soltando um grito de pavor, o jovem monge correu a encerrar-se em seu túmulo de pedras mudas.
O grito que acabava de soltar, pensou ele, enquanto se escondia, trémulo, em seu refúgio, aquele grito não constituía, na verdade, uma infração à lei do silêncio... E começou a acariciar a caixa de metal que apertava junto ao coração, enquanto rezava para que a Quaresma terminasse rapidamente. À sua volta, as pedras do esconderijo eram arranhadas por garras...

Todas as noites os lobos rondavam o miserável abrigo do frade, enchendo as trevas com seus uivos de morte, e de dia, ele era atacado por autênticos pesadelos provocados pela fome, pelo calor e pelas impiedosas queimaduras do sol. O frei Francis ocupava os dias a apanhar madeira para queimar e também a rezar, empenhando-se em dominar a própria impaciência de ver finalmente chegar o sábado de aleluia que marcaria o fim da Quaresma e de seu jejum.
No entanto, quando esse bendito dia surgiu enfim, o jovem monge estava demasiado enfraquecido pelas privações para arranjar forças para se alegrar. Vencido por uma enorme fadiga, arranjou a sacola, pôs o capuz na cabeça para se preservar do sol e colocou debaixo do braço a preciosa caixa. Com menos uma quinzena de quilos em relação à quarta-feira de cinzas, e num andar vacilante, iniciou o percurso de dez quilómetros que o separavam da abadia... Esgotado, deixou-se cair no momento em que atingia a porta; os frades que o recolheram e prodigalizaram os primeiros cuidados à sua pobre carcaça desidratada contaram que, enquanto delirava, não cessara de falar num anjo de tanga de juta e de invocar o nome do Bem-Aventurado Leibowitz, agradecendo-lhe com fervor por lhe ter revelado as relíquias sagradas, assim como a aposta mútua.
A notícia desses vaticínios espalhou-se pela comunidade e chegou rapidamente aos ouvidos do padre abade, responsável pela disciplina geral, o qual logo se enfureceu: - Tragam-mo aqui! - disse num tom capaz de dar asas aos menos solícitos.
Enquanto esperava o jovem monge o abade caminhava de um lado para outro, ao mesmo tempo em que a cólera o invadia. Não era, evidentemente, contra os milagres, longe disso. Embora fossem dificilmente compatíveis com as necessidades da administração interna, o padre acreditava piamente em milagres, visto que constituíam a própria base de sua fé. Mas achava que esses milagres deviam pelo menos ser controlados, verificados e autenticados nas formas prescritas, segundo as regras estabelecidas. Depois da recente beatificação do venerado Leibowitz, de fato, aqueles jovens monges amalucados resolviam desco-brir milagres em toda parte.
Por compreensível que na verdade fosse essa propensão para o maravilhoso, nem por isso era menos intolerável. Evidentemente, toda a ordem monástica digna desse nome tem o maior interesse em contribuir para a canonização de seu fundador, reunindo com o maior zelo todos os elementos suscetíveis de contribuírem para o fato, mas há limites! Ora, de uns tempos para cá, o abade constatara que seu rebanho de monges tinha tendência para escapar à sua autoridade, e o apaixonado zelo que os jovens frades punham em descobrir e recensear os milagres colocara de tal forma em ridículo a Ordem Albertiana de Leibowitz que até no Novo Vaticano já troçavam do fato...
Por isso o padre abade estava bem decidido a ser severo: doravante, qualquer propagador de notícias milagrosas sofreria um castigo. No caso de se tratar de um falso milagre, o responsável pagaria dessa forma o preço da indisciplina e da credulidade; no caso de um milagre autêntico, revelado por verificações ulterio-res, pelo contrário, o castigo sofrido constituiria a penitência obrigatória que devem sofrer todos aqueles que se beneficiam da dádiva de uma graça.
No momento em que o jovem noviço bateu timidamente à porta, o padre, que chegara ao termo de suas reflexões, encontrava-se portanto na disposição que convinha para a circunstância, um estado de espírito realmente feroz, dissimulado sob a mais hipócrita das aparências.
- Entre, meu filho - disse numa voz suave.
- Mandou-me chamar, meu reverendo padre? - inquiriu o noviço e teve um sorriso encantado ao descobrir sua caixa de metal em cima da mesa do abade.
- Mandei - respondeu o padre, que pareceu hesitar um instante. - Mas - prosseguiu - é talvez preferível que, de agora em diante, seja eu que o procure, visto que se transformou numa personagem tão célebre?
- Oh! não, meu padre! - exclamou o frei Francis, escarlate e meio sufocado.
- Tem dezassete anos, e é visível que não passa de um imbecil.
- Sem dúvida alguma, meu reverendo.
- Nessas condições, quer dizer-me por que insensato motivo se acha digno de entrar para as ordens?
- Não tenho absolutamente nenhum motivo, Ó meu venerável mestre. Não passo de um miserável pecador, cujo orgulho não tem perdão.
- E ainda aumenta os seus pecados - rugiu o abade - supondo o seu orgulho tão grande que é imperdoável!
- É verdade, meu padre. Não passo de um verme.
O abade teve um sorriso glacial e recuperou sua calma vigilante.
- Está então disposto a desdizer-se - continuou - e a renegar todas as divagações que proferiu sob o efeito da febre, a propósito de um anjo que lhe teria aparecido e lhe teria confiado este... - designou com um gesto desdenhoso a caixa de metal - esta miserável pacotilha?
O frei Francis teve um sobressalto e fechou receosamente os olhos.
- Eu... receio muito não o poder fazer, ó meu mestre - disse num sopro.
- O quê?!
- Não posso negar o que os meus olhos viram, meu reverendo padre.
- Sabe o castigo que o espera?
- Sei, meu padre.
- Muito bem. Prepare-se portanto para recebê-lo.
Com um suspiro resignado, o noviço arregaçou a longa túnica até a cintura e inclinou-se sobre a mesa. Tirando então da gaveta uma sólida vara de nogueira, o padre vergastou-lhe dez vezes seguidas o traseiro. (Após cada golpe, o noviço pronunciava com submissão o Deo gratias! merecido pela lição de humildade que dessa forma lhe era concedida.)
- E agora - perguntou o abade recompondo as mangas - está disposto a desdizer-se?
- Meu padre, não posso fazê-lo.
Voltando-lhe bruscamente as costas, o padre ficou por momentos em silêncio.
- Muito bem - disse por fim com voz mordaz. - Seja como o deseja. Mas não conte tomar ordens solenes este ano, ao mesmo tempo que os outros.
Banhado em lágrimas, o frei Francis regressou a sua cela. Os outros noviços iam receber o traje monacal, ao passo que ele, pelo contrário, teria de esperar ainda um ano e passar outra Quaresma no deserto, no meio dos lobos, em busca de uma vocação que no íntimo sabia que lhe fora amplamente concedida...
No decorrer das semanas que se seguiram, o desgraçado teve pelo menos a consolação de constatar que o abade não tivera inteiramente razão ao classificar o conteúdo da caixa de metal de "desprezível pacotilha". Era evidente que aquelas relíquias arqueológicas tinham despertado vivo interesse entre os frades, que dedicavam muito tempo à sua limpeza e arrumação; esforçavam-se, igualmente, por restaurar os documentos escritos e por lhes decifrar o sentido. Corria mesmo o boato, na comunidade, de que o frei Francis descobrira realmente as verdadeiras relíquias do Bem-Aventurado Leibowitz - particularmente sob a forma do documento, ou azul, que tinha seu nome e sobre o qual se viam ainda algumas manchas acastanhadas. (Sangue de Leibowitz, talvez? O padre abade era de opinião que se tratava de sumo de maçã.) Em todo caso o documento tinha a data do ano da graça de 1956, o que parecia provar que era contemporâneo do venerando fundador da ordem.
Aliás, sabia-se muito pouco a respeito do Bem-Aventurado Leibowitz; sua história perdia-se na bruma do passado, que ainda mais obscurecia a lenda. Afirmava-se simplesmente que Deus, para pôr à prova o género humano, ordenara aos cientistas de outrora - entre os quais figurava o Bem-Aventurado Leibowitz - que aperfeiçoassem certas armas diabólicas, graças às quais o Homem, no espaço de algumas semanas, conseguira destruir o essencial da civilização, suprimindo ao mesmo tempo grande número de seus semelhantes. Dera-se então o Dilúvio de Chamas, seguido de pestes e flagelos diversos, e finalmente da loucura coletiva que viria a conduzir à Idade da Simplificação. No decurso desta última época, os derradeiros representantes da humanidade, invadidos por um furor vingativo, derrotaram todos os politiqueiros, técnicos e homens de ciência; além disso, queimaram todas as obras e documentos que teriam permitido enveredar novamente pelas vias da destruição científica. Naquele tempo perseguiram com um ódio sem precedentes todos os escritos, todos os homens cultos - a tal ponto que a palavra "'papalvo" acabara por ser sinônimo de cidadão honesto, íntegro e virtuoso.
Para escapar à legítima cólera dos papalvos sobreviventes, muitos cientistas e eruditos tentaram refugiar-se no seio da Nossa Madre Igreja. De fato ela acolheu-os, cobriu-os com trajes monacais e esforçou-se por subtraí-los às perseguições da populaça. Aliás, esse proceder não foi contudo bem sucedido, pois alguns mosteiros foram invadidos, os arquivos e os textos sagrados, lançados à fogueira, enquanto os que ali se tinham refugiado eram enforcados. No que se refere a Leibowitz, encontrara asilo entre os cistercienses. Tendo tomado ordens, tornou-se padre e, ao fim de doze anos, foi-lhe concedida autorização para fundar uma nova ordem monástica, a dos albertianos, assim chamada em memória de Alberto Magno, professor do famoso Santo Tomás de Aquino e padroeiro de todos os cientistas. A congregação recentemente criada devia dedicar-se à proteção da cultura, tanto sagrada como profana, e seus membros teriam como obrigação principal transmitir às gerações seguintes os raros livros e documentos que tinham escapado à destruição e que eram obrigados a manter escondidos. Finalmente certos papalvos reconheceram em Leibowitz um antigo cientista e condenaram-no à forca. No entanto, a ordem que fundara nem por isso deixou de funcionar, e seus membros, logo que foi novamente dada autorização de possuir documentos escritos, puderam mesmo dedicar-se a transcrever de memória numerosas obras do passado. Mas sendo a memória desses analistas forçosamente limitada (aliás eram poucos os que possuíam cultura suficiente para compreender as ciências físicas), os frades copistas consagravam a maior parte de seus esforços aos textos sagrados, assim como às obras referentes às belas-letras ou às questões sociais. Por esse motivo, de todo o imenso repertório de conhecimentos humanos apenas sobreviveu uma insignificante coleção de pequenos tratados manuscritos.
Após seis séculos de obscurantismo, os monges continuavam a estudar e a recopiar sua pobre colheita. Aguardavam... Evidentemente, a maior parte dos textos que tinham salvado não lhes serviam para nada - mantendo-se, alguns deles, rigorosamente incompreensíveis para os monges. Mas, para aqueles bons religiosos, bastava saber que eram senhores do Conhecimento: saberiam salvá-lo e transmiti-lo, como exi-gia seu dever - e isso, mesmo que o obscurantismo universal viesse a durar dez mil anos...
O frei Francis Gerald, do Utah, voltou para o deserto no ano seguinte e ali fez, solitariamente, seu jejum. Mais uma vez regressou ao mosteiro, fraco e emagrecido, e novamente foi convocado pelo padre abade, que lhe perguntou se estava finalmente decidido a renegar suas extravagantes declarações.
- Não posso, meu padre - repetiu ele -, não posso negar o que vi com os meus próprios olhos.
E o abade, uma vez mais, o castigou; uma vez mais, também, adiou para uma data ulterior a sua entrada nas ordens...
No entanto, os documentos contidos na caixa de metal tinham sido confiados a um seminário, para estudo, depois de tirada uma cópia. Mas o frei Francis continuava a ser um simples noviço, um noviço que ainda sonhava com o magnífico santuário que um dia seria edificado no local de sua descoberta...
"Diabólica teimosia!", explodia o abade. "Se o peregrino de que aquele idiota se obstina a falar se dirigia, como diz, para a nossa abadia, como seria possível que nunca o tivéssemos visto?... Um peregrino de tanga de juta, hein?!"
No entanto, essa história da tanga de juta não deixava de inquietar o padre. De fato, segundo a tradição, o Bem-Aventurado Leibowitz, na época do enforcamento, levara um saco de juta na cabeça, à guisa de capuz.

O frei Francis manteve-se noviço durante sete anos e viveu no deserto sete Quaresmas sucessivas. Com esse regime tornou-se mestre na arte de imitar o uivo dos lobos, e aconteceu várias vezes, por questões de brincadeira, arrastar a matilha de feras até os muros da abadia, em noites sem lua... Durante o dia contentava-se em trabalhar nas cozinhas e esfregar as lajes do mosteiro, ao mesmo tempo em que continuava a estudar autores antigos.
Um belo dia chegou à abadia um enviado do seminário montado num burro, portador de uma notícia muito agradável.
- Está provado - anunciou ele - que os documentos encontrados perto daqui pertencem realmente à data indicada e que especialmente o azul se relaciona de certa maneira com a carreira do vosso bem-aventurado fundador. Enviaram-no ao Novo Vaticano, que o estudará mais profundamente.
- Nesse caso - perguntou o abade -, poder-se-ia tratar, afinal, de uma autêntica relíquia de Leibowitz?
Mas o mensageiro, pouco disposto a comprometer-se, limitou-se a arquear as sobrancelhas.
- Diz-se que Leibowitz era viúvo, quando de sua ordenação - murmurou. - Evidentemente, se fosse possível descobrir o nome de sua defunta esposa...
Foi então a vez do abade, ao lembrar-se da pequena nota onde figurava um nome de mulher, de erguer também as sobrancelhas...
Pouco depois mandou chamar o frei Francis.
- Meu filho - declarou-lhe num tom positivamente radiante -, creio que chegou o momento, para você, de pronunciar enfim seus votos solenes. Que me seja permitido nesta ocasião felicitá-lo pela paciência e firmeza de opiniões de que não tem cessado de nos dar provas. Evidentemente, nunca mais falaremos do seu... hum... encontro com um... hum!... caminhante do deserto. Meu filho, é um bom papalvo, e pode ajoelhar-se se deseja que o abençoe.
O frei Francis soltou um profundo suspiro e perdeu os sentidos, fulminado pela emoção. O padre abençoou-o, depois reanimou-o e permitiu-lhe que pronunciasse os votos perpétuos: pobreza, castidade, obediência - e observância da regra.
Pouco tempo depois, o novo professor da Ordem Albertiana dos Frades de Leibowitz foi transferido à sala dos copistas, sob a vigilância de um velho monge chamado Homer, e começou a ornamentar conscienciosamente as páginas de um tratado de álgebra com belas iluminuras representando ramos de oliveira e querubins bochechudos.
- Se assim o deseja - participou-se o velho Homer com sua voz cansada -, pode dedicar cinco horas por semana a qualquer ocupação à sua escolha, sob reserva de aprovação, evidentemente. Caso contrário, utilizará essas horas de labor facultativo copiando a Summa theologica (2), assim como os fragmentos da Encyclopaedia Britannica que nos vieram parar às mãos.
Depois de ter refletido no assunto, o jovem monge perguntou:
- Ser-me-ia permitido consagrar essas horas a fazer uma bela cópia do documento de Leibowitz?
- Não sei, meu filho - replicou o frei Homer franzindo o sobrolho. - Trata-se de um assunto a respeito do qual o nosso excelente padre se mostra um pouco irritado, como sabe... enfim - concluiu perante as súplicas do jovem copista -, acedo apesar de tudo a dar-lhe o meu consentimento, pois é um trabalho que não lhe tomará muito tempo.
O frei Francis arranjou portanto o mais belo pergaminho que pôde encontrar e passou longas semanas a raspar e polir a pele com uma pedra lisa, até que conseguiu dar-lhe uma resplandecente brancura de neve. Depois consagrou outras semanas a estudar as cópias do precioso documento, até que decorou todo o traçado, todo o misterioso emaranhado de linhas geométricas e de símbolos incompreensíveis. Por fim, sentiu-se capaz de reproduzir de olhos fechados a espantosa complexidade do documento. Passou ainda várias semanas a revistar a biblioteca do mosteiro em busca de documentos que lhe permitissem fazer uma idéia, mesmo vaga, do significado do plano.
O frei Jeris, um jovem monge, que também trabalhava na sala dos copistas e troçara muitas vezes dele e de suas milagrosas aparições no deserto, surpreendeu-o entregue a essa tarefa.
- Posso perguntar-lhe - disse inclinando-se-lhe por cima do ombro - o significado da menção "mecanismo de controle transitorial para elemento 6-B"?
- É evidentemente o nome do objeto que o esquema representa - replicou o frei Francis num tom um pouco seco, pois o frei Jeris apenas lera em voz alta o título do documento.
- Sem dúvida... Mas então o que representa esse esquema?
- Mas... o mecanismo de controle transitorial de um elemento 6-B, evidentemente!
O frei Jeris deu uma gargalhada, e o jovem copista sentiu-se corar.
- Suponho - continuou - que o esquema representa na realidade algum conceito abstrato. Na minha opinião este mecanismo de controle transitorial devia ser uma abstração transcendental.
- E em que categoria de conhecimento classificaria a sua abstração? - perguntou Jeris, sempre sarcástico.
- Bem, vejamos. ..- o frei Francis hesitou um momento, depois continuou: - Tendo em conta os trabalhos que o Bem-Aventurado Leibowitz realizava antes de se dedicar à religião, parece-me que o conceito de que aqui se trata se referia a essa arte hoje esquecida e que outrora se chamava eletrónica.
- De fato, essa palavra figura nos textos escritos que nos foram transmitidos. Mas o que é que significa exatamente?
- Os textos também no-lo dizem: o objetivo da eletrónica era a utilização do Elétron, que um dos manuscritos em nosso poder, infelizmente em fragmentos, nos define como uma torção do nada negativamente carregada (3).
- A sua subtileza impressiona-me - extasiou-se Jeris. - Posso ainda perguntar-lhe o que é a negação do nada?
O frei Francis, cada vez mais corado, embasbacou.
- A torção negativa do nada - prosseguiu o impiedoso Jeris - deve apesar de tudo ir dar em qualquer coisa de positivo. Portanto, frei Francis. Suponho que acabará por nos criar essa coisa qualquer, se nisso empenhar todos os seus esforços. Graças a você não há dúvida de que acabaremos por possuir esse famoso Elétron. Mas que fazemos então dele? Onde o meteremos? Em cima do altar-mor, talvez?
- Não faço a menor idéia - replicou Francis, que começava a enervar-se - e também ignoro o que era um Elétron, assim como a utilidade que poderia ter. Tenho apenas a profunda convicção de que deve ter existido, numa determinada época, e é tudo.
Dando um riso trocista, Jeris, o iconoclasta, deixou-o e retornou a seu trabalho. Esse incidente entristecera o frei Francis, sem no entanto afastá-lo do projeto que acalentava. Assim que assimilou as informações que a biblioteca do mosteiro lhe podia fornecer sobre a arte perdida em que Leibowitz se celebrizara, esboçou alguns anteprojetos do plano que queria reproduzir sobre o pergaminho. O próprio esquema, visto que não conseguia penetrar-lhe o significado, seria reproduzido com todo o cuidado, tal como se apresentava no documento original. Para isso empregaria tinta preta; em contrapartida, utilizaria tintas de cor e caracteres de fantasia altamente decorativos para reproduzir os números e as legendas do plano. Decidiu igualmente quebrar a austera e geométrica monotonia de sua reprodução ornamentando-a com pombas e querubins, parras verdejantes, frutos dourados e aves multicoloridas - até mesmo com uma artificiosa serpente. Ao alto da obra desenharia uma representação simbólica da Santíssima Trindade, e embaixo, para fazer simetria, um desenho da cota de malha que servia de emblema à ordem. O mecanismo de controlo transitorial do Bem-Aventurado Leibowitz estaria desta forma dignificado como convinha e sua mensagem dirigir-se-ia tanto aos olhos como ao espírito.
Assim que terminou o esboço preliminar, submeteu-o timidamente à opinião do frei Horner.
- Apercebo-me - disse o velho monge com certo ar de remorso - de que esse trabalho o ocupará muito mais tempo do que pensei... Mas pouco importa: continue. O desenho é belo, realmente muito belo.
- Obrigado, meu irmão.
O frei Horner piscou um dos olhos para o jovem religioso:
- Disseram-me - murmurou em tom de confidência - que decidiram ativar as formalidades necessárias para a canonização do Bem-Aventurado Leibowitz. Portanto, é provável que atualmente o nosso bondoso padre se sinta muito menos inquieto com aquilo que sabemos.
Evidentemente, todos estavam ao corrente dessa importante notícia. A beatificação de Leibowitz era há muito um fato consumado, Imas as últimas formalidades que fariam dele um santo podiam exigir ainda um bom número de anos. Além disso, havia sempre a recear que o Advogado do Diabo descobrisse algum motivo que tornasse impossível a canonização projetada.
Ao fim de vários meses, o frei Francis começou finalmente a trabalhar em seu belo pergaminho, traçando carinhosamente os finos arabescos, as volutas complicadas e as elegantes iluminuras, realçadas por folhas douradas. Era um trabalho de grande fôlego que empreendera, um trabalho que exigia vários anos para terminar com sucesso. Os olhos do copista, como é natural, foram submetidos a uma rude prova, e por vezes via-se obrigado a interromper seu labor durante longas semanas, com receio de que um descuido motivado pela fadiga fosse danificar todo o conjunto. Todavia, pouco a pouco a obra criava forma, e apresentava uma beleza tão grandiosa que todos os monges da abadia se empenhavam em contemplá-la com admiração. Apenas o céptico frei Jeris continuava a criticar.
- Pergunto a mim mesmo - dizia ele - por que não emprega seu tempo num trabalho útil.
Quanto a ele, era o que fazia, visto que fabricava abajures de pergaminho ornamentado para as candeias de azeite da capela.
Entretanto, o velho frei Homer adoeceu e começou a enfraquecer rapidamente. Nos primeiros dias do Advento, os seus irmãos cantaram em sua intenção a Missa dos Defuntos e confiaram-lhe os despojos à terra original. O abade escolheu o frei Jeris para suceder ao defunto na vigilância dos copistas e o invejoso imediatamente aproveitou o fato para ordenar a frei Francis que abandonasse sua obra-prima. Já era tempo, disse-lhe, de acabar com aquelas infantilidades; agora tratava-se de fabricar abajures. O frei Francis colocou em lugar seguro o fruto de suas vigílias e obedeceu sem recalcitrar. Enquanto pintava seus abajures, consolava-se pensando que todos nós somos mortais... Um dia, sem dúvida, a alma do frei Jeris iria juntar-se no Paraíso à do frei Homer, pois afinal a sala dos copistas nunca fora mais do que a antecâmara da Vida Eterna. Então, se essa fosse a vontade de Deus, ser-lhe-ia permitido continuar a obra-prima interrompida...
No entanto a Divina Providência encarregou-se do caso muito antes da morte do frei Jeris. Logo no verão seguinte apresentou-se à porta do mosteiro um bispo que cavalgava montado numa mula", acompanhado por numeroso séquito de dignitários eclesiásticos. O Novo Vaticano, anunciou, encarregara-o de ser o advogado da canonização de Leibowitz e vinha recolher junto do padre abade todas as informações suscetíveis de auxiliá-lo em sua missão: em particular, desejava esclarecimentos a respeito de uma aparição terrestre do Bem-Aventurado, com que fora agraciado um certo frei Francis Gerald, do Utah.
O enviado do Novo Vaticano foi calorosamente acolhido, como é de praxe. Instalaram-no nos aposentos reservados aos prelados de passagem e puseram-lhe às ordens seis jovens noviços atentos a satisfazer seus mínimos desejos. Abriram em sua honra as melhores garrafas, assaram-se as mais delicadas aves, arranjando-lhe, todas as noites, vários violinistas e uma companhia inteira de palhaços.
Havia três dias que o bispo ali estava quando o padre abade fez comparecer diante dele o frei Francis.
- Monsenhor di Simone deseja vê-lo - disse-lhe. - Se tiver a infelicidade de dar livre curso à sua imaginação faremos de suas tripas cordas de violino, atiraremos sua carcaça aos lobos e seus ossos serão sepultados em terra que não seja sagrada... Agora, meu filho, vá em paz: o monsenhor está à sua espera.
O frei Francis não tinha a menor necessidade da advertência do padre para refrear a língua. Desde o longínquo dia em que a febre o tornara loquaz, depois da primeira Quaresma passada no deserto, evitara falar fosse a quem fosse no encontro com o peregrino. Mas perturbava-o ver que as maiores autoridades eclesiásticas se interessavam bruscamente por esse mesmo peregrino, por isso, o coração batia-lhe com força quando se apresentou diante do bispo.
Aliás, seu pavor revelou-se sem o menor fundamento. O prelado era um velho muito paternal, que parecia interessar-se acima de tudo pela carreira do fradinho.
- E agora - disse-lhe, após alguns momentos de amena conversa - fale-me do encontro que teve com o seu Bem-Aventurado fundador.
- Oh, monsenhor! Eu nunca disse que se tratava do Bem-Aventurado Leibo...
- Claro, meu filho, claro... Aliás, trouxe-lhe um auto dessa aparição. Foi elaborado segundo informações recolhidas nas melhores fontes. Peço-lhe apenas para ler. Após o que, me confirmará sua exatidão, ou, se for necessário, corrigi-lo-á. Bem entendido, este
documento baseia-se apenas em rumores. Na realidade, só você pode nos dizer o que na verdade se passou. Peço-lhe, portanto, para lê-lo muito atentamente.
O frei Francis pegou o espesso maço de papéis que o prelado lhe estendia e começou a ler a descrição oficial com uma apreensão cada vez maior, que não tardou em degenerar num verdadeiro pavor.
- Sua fisionomia está se alterando, meu filho - notou o bispo. - Terá constatado algum erro?
- Mas... mas... não foi assim... não foi absolutamente assim que as coisas se passaram! - exclamou o desgraçado monge, aterrado. - Só o vi uma vez, e ele limitou-se a perguntar-me o caminho para a abadia. De-pois bateu o bordão na pedra sob a qual descobri as relíquias...
- Se estou compreendendo bem, não houve então coro celestial?
- Oh, não!
- Nem auréola ao redor de sua cabeça, nem tapete de rosas desenrolando-se sob seus passos à medida que ele avançava?
- Perante Deus que me observa, monsenhor, afirmo que nada disso aconteceu!
- Bem, bem - disse o bispo suspirando. - Bem sei que as histórias que os viajantes narram contêm sempre uma grande dose de exagero...
Como parecia desiludido, o frei Francis apressou-se a pedir desculpas, mas o advogado do futuro santo acalmou-o com um gesto:
- Não se preocupe, meu filho - assegurou-lhe. - Não nos faltam milagres, devidamente comprovados, graças a Deus!... Em todo caso, os papéis que descobriu tiveram pelo menos uma utilidade, visto que nos permitiram descobrir o nome da esposa de seu venerável fundador, a qual morreu, como sabe, antes de ele se dedicar à religião.
- Realmente, monsenhor?
- Sim. Chamava-se Emily.
Desapontado com a descrição que o jovem monge lhe fizera do encontro com o peregrino, monsenhor di Simone nem por isso deixou de passar cinco dias no local onde Francis descobrira a caixa de metal. Acompanhava-o uma corte de noviços, agitando pás e enxadas... Depois de terem cavado muito fundo, o bispo regressou à abadia, na noite do quinto dia, com um rico espólio de diversas relíquias, entre as quais uma velha caixa de alumínio que continha ainda alguns vestígios de uma massa ressequida, provavelmente de chucrute.
Antes de deixar a abadia, visitou a sala dos copistas e quis ver a reprodução que o frei Francis havia feito do célebre papel azul de Leibowitz. O monge, ao mesmo tempo em que protestava dizendo tratar-se de coisa sem importância, exibia-o com mão trêmula.
- Arre! - Exclamou o bispo (pelo menos foi o que julgaram ouvir). - É preciso terminar este trabalho, meu filho, é preciso!
Sorridente, o monge procurou o olhar do frei Jeris. Mas o outro apressou-se a voltar a cabeça... No dia se-guinte, o frei Francis punha novamente mãos à obra, munido de uma quantidade adicional de penas de ganso, folhas douradas e pincéis variados.

...Continuava ocupado naquela tarefa quando se apresentou no convento uma nova delegação vinda do Vaticano. Dessa vez tratava-se de um grupo numeroso, que contava inclusive com guardas armados para impedir os ataques de salteadores de estrada. À testa, orgulhosamente montado numa mula preta, pavo-neava-se um prelado com a cabeça ornamentada com pequeninos chifres e a boca com longos colmilhos acerados (foi, pelo menos, o que afirmaram vários noviços). Apresentou-se como o Advocatus Diaboli, en-carregado de se opor por todos os meios à canonização de Leibowitz, e explicou que vinha à abadia para investigar certos boatos absurdos, propalados por fradinhos histéricos, e cujo rumor chegara aos ouvidos das autoridades supremas do Novo Vaticano. Bastava olhar para aquele emissário para imediatamente ver que não era pessoa que se deixasse enganar.
O abade acolheu-o delicadamente e ofereceu-lhe um pequeno leito todo de ferro, numa cela, pedindo desculpa por não poder alojá-lo nos aposentos de honra, provisoriamente inabitáveis por uma questão de higiene. Esse novo hóspede contentou-se, para o seu serviço, com as pessoas de seu séquito, e, no refeitório, partilhou das refeições habituais dos monges: ervas cozidas e caldo de raízes.
- Disseram-me que está sujeito a crises nervosas, com perda de sensibilidade - disse ele ao frei Francis quando o monge compareceu à sua frente. - Quantos loucos ou epilépticos houve em seus ascendentes ou parentes?
- Nenhum, Excelência.
- Não me chame Excelência! - Rugiu o dignitário. - E fique sabendo que não terei a menor dificuldade em fazer-lhe dizer toda a verdade.
Falava do assunto como de uma intervenção cirúrgica das mais banais, e era visível que achava que deveria ter sido feita há muitos anos.
- Não ignora - continuou - que existem processos para envelhecer artificialmente os documentos, não é verdade?
O frei Francis ignorava-o.
- Sabe igualmente que a mulher de Leibowitz se chamava Emily e que Emma não é absolutamente o diminutivo desse nome?
Francis também não tinha grandes conhecimentos a respeito desse assunto. Lembrava-se simplesmente de que os pais, em sua infância, empregavam por vezes certos diminutivos um pouco ao acaso... "E depois", pensou, "se o Bem-Aventurado Leibowitz - abençoado seja ele! - decidira chamar Emma à mulher, estou certo de que sabia o que fazia..."
O enviado do Novo Vaticano começou então a dar-lhe uma lição de semântica com tamanha impetuosidade que o pobrezinho do frade julgou que ia enlouquecer. No final dessa tumultuosa sessão, já nem sequer sabia se alguma vez encontrara ou não um peregrino.
Antes da partida, o Advogado do Diabo quis também ver a cópia iluminada que Francis fizera, e o pobre apresentou-lha com a morte na alma. O prelado, a princípio, pareceu atrapalhado; depois engoliu em seco e fez um esforço para dizer qualquer coisa.
- É evidente que não lhe falta imaginação. Mas, quanto a isso, creio que já todos o sabiam aqui.
Os chifres do emissário tinham encurtado vários centímetros, e ele partiu nessa mesma noite para o Novo Vaticano.

...E os anos passaram, acrescentando algumas rugas aos rostos juvenis, alguns cabelos brancos às têmporas dos monges. No mosteiro, a vida corria como de costume, e os monges continuavam absorvidos em suas cópias, como antigamente. Um belo dia o frei Jeris resolveu construir uma prensa de impressão. Quando o abade lhe perguntou o motivo, só soube responder:
- Para aumentar a produção.
- Ah, sim? - disse o padre. - E para que pensa que poderiam servir suas papeladas, num mundo em que se é tão feliz por não saber ler? Talvez possa vendê-las aos camponeses para acenderem o lume, não acha?
Mortificado, o frei Jeris encolheu tristemente os ombros - e os copistas do mosteiro continuaram a trabalhar com penas de ganso...
Numa manhã de primavera, pouco antes da Quaresma, apresentou-se no mosteiro um novo mensageiro trazendo uma boa, excelente notícia: os documentos reunidos para a canonização de Leibowitz já estavam completos, o Sacro Colégio não tardaria a reunir-se e o fundador da Ordem dos Albertianos em breve figuraria entre os santos do calendário.
Enquanto toda a confraria se regozijava, o padre abade - muito velho, agora, e bastante combalido - mandou chamar o frei Francis.
- Sua Santidade exige sua presença por ocasião das festas que se vão realizar para a canonização de Isaac Edward Leibowitz - cuspinhou ele. - Prepare-se para partir.
E acrescentou, num tom resmungão:
- Se deseja desmaiar. Vá fazê-lo longe daqui!

A viagem do jovem monge até o Novo Vaticano exigiria pelo menos três meses - talvez mais: tudo dependia da distância que pudesse percorrer antes que os inevitáveis salteadores de estrada o privassem de seu asno.
Partiu só e sem armas, munido apenas de uma gamela de mendigo. Apertava contra o coração a cópia iluminada do papel azul de Leibowitz e pedia a Deus, enquanto avançava, que não lha roubassem... É verdade que os ladrões eram pessoas ignorantes e não saberiam que destino lhe dar... Por precaução, apesar de tudo, o monge ostentava um pedaço de tecido negro sobre o olho direito. Os camponeses eram supersticiosos de fato, e a simples ameaça ou "mau-olhado" bastavam por vezes para pô-los em fuga.
Após dois meses e alguns dias de viagem, o frei Francis encontrou seu gatuno, num atalho da montanha ladeado por espesso mato, longe de qualquer habitação. Era um homem baixo, mas visivelmente sólido como um boi. De pernas afastadas, os braços vigorosos cruzados sobre o peito, estava parado no meio do atalho, à espera do monge, que ia lentamente ao seu encontro, com o passo vagaroso de sua montada... Parecia estar só e como arma tinha apenas uma faca, que nem sequer tirou do cinto. O encontro causou grande desapontamento ao monge: de fato, no íntimo de seu coração, não cessara de acreditar que, ao longo do caminho, encontraria o peregrino de outrora.
- Alto! - ordenou o ladrão.
O asno parou por sua livre vontade. O frei Francis ergueu o capuz para mostrar a pala preta e dela aproximou lentamente a mão, como se se preparasse para revelar qualquer espetáculo horrível, dissimulado sob o tecido. Mas o homem, atirando a cabeça para trás, deu um riso sinistro e verdadeiramente satânico. O monge apressou-se a murmurar um exorcismo, com o qual o ladrão não pareceu impressionado.
- Há muito tempo que isso não pega mais - disse ele. - Vamos, desça, e depressa!
O frei Francis encolheu os ombros, sorriu e desceu da montaria sem protestar.
- Desejo-lhe muito boa tarde, senhor! - Disse num tom amável. - Pode ficar com o asno, a caminhada far-me-á bem.
E já se afastava, quando o ladrão lhe barrou o caminho.
- Espere! Dispa-se todo, e mostre-me o que há dentro desse embrulho!
O monge mostrou-lhe a gamela, com um pequeno gesto de escusa, mas o outro começou a rir cada vez mais.
- O truque da pobreza... também já mo empregaram! - Afirmou ele à sua vítima em tom sarcástico -, mas o último pedinte que mandei parar tinha meio heklo de ouro na bota... Vamos, dispa-se depressa!
Depois de o monge ter cumprido a ordem, o homem revistou-lhe as roupas; nada encontrando, tornou a entregar-lhas.
- Agora - continuou -.Vejamos esse embrulho.
- É apenas um documento, senhor - protestou o frade - um documento sem valor a não ser para o proprietário.
- Abra o embrulho, já lhe disse!
O frei Francis obedeceu sem uma palavra, e as iluminuras do pergaminho em breve brilharam sob os raios solares. O gatuno deu um assobio de admiração.
- Bonito! A minha mulher é que vai ficar contente por poder pregar isto na parede da cabana!
A essas palavras, o pobre monge sentiu o coração parar e começou a murmurar uma silenciosa oração: "Se Tu mo enviaste para me pôr à prova, ó Senhor", suplicou com fervor, "dá-me pelo menos a coragem de morrer como um homem, pois se está escrito que ele mo vai roubar, só poderei tirá-lo do cadáver do Teu indigno servo!"
Feche o embrulho! - Ordenou de súbito o ladrão, cuja decisão estava tomada.
- Seja quem for, senhor - gemeu o frei Francis -, não quer decerto privar um pobre homem de um trabalho em que empenhou a vida inteira... Passei quinze anos a iluminar este manuscrito e...
- O quê? - Interrogou o gatuno. - Foi você mesmo que o fez?
E começou a rir aos berros.
- Não compreendo, senhor - retorquiu o monge, corando ligeiramente -, o que possa haver de divertido nisso. ..
- Quinze anos! - disse o homem entre dois acessos de hilaridade -, quinze anos! E por que motivo, é capaz de me dizer? Por um pedaço de papel! Quinze anos... Ah!
Pegando com ambas as mãos a folha iluminada, preparou-se para rasgá-la. Então o frei Francis deixou-se cair de joelhos, no meio do atalho.
- Jesus, Maria, José! - exclamou. - Suplico-lhe, senhor, pelo amor de Deus!
O ladrão pareceu um pouco lisonjeado; atirando o pergaminho ao chão, perguntou em tom sarcástico:
- Estaria pronto a bater-se para defender seu pedaço de papel?
- Se o deseja, senhor! Farei tudo o que quiser!
Ambos se puseram em guarda. O monge benzeu-se precipitadamente invocando o Céu, recordando-se de que a luta fora outrora um desporto autorizado pela divindade, depois lançou-se ao combate...
Três segundos depois jazia sobre as pedras pontiagudas que lhe martirizavam a espinha, meio sufocado por uma pequena montanha de músculos rijos.
- Pronto! - Disse modestamente o ladrão, que se ergueu e pegou o pergaminho.
Mas o monge arrastava-se de joelhos, com as mãos postas, ensurdecendo-o com súplicas desesperadas.
- Meu Deus! - Escarneceu o ladrão. - Você seria capaz de me beijar as botas, para que eu lhe devolvesse a estampa.
Como única resposta, o frei Francis agarrou-o de um salto e começou a beijar com fervor as botas do vencedor.
Era demais, mesmo para um refinado patife. Com uma praga, o gatuno atirou o manuscrito ao chão, saltou para cima do burro e desapareceu... Francis imediatamente caiu sobre o precioso manuscrito e agarrou-o. Depois começou a saltitar atrás do homem, pedindo em sua intenção todas as bênçãos do Céu e agradecendo ao Senhor ter criado malandrins tão abnegados...
No entanto, assim que o ladrão e o asno desapareceram atrás das árvores, o monge começou a perguntar-se com certa tristeza por que, de fato, consagrara quinze anos de sua vida àquele pedaço de pergaminho... As palavras do gatuno ainda lhe soavam aos ouvidos: "E por que motivo, é capaz de me dizer?..." Sim, por quê, efetivamente por que razão?
O frei Francis retomou o caminho, a pé, meditativo, com a cabeça inclinada debaixo do capuz... Em certo momento veio-lhe mesmo a idéia de atirar o documento para o meio do mato e lá deixá-lo à chuva... Mas o padre abade aprovara sua decisão de entregá-lo às autoridades do Novo Vaticano, como presente. O monge refletiu que não podia lá chegar de mãos vazias, e continuou, tranquilamente, seu caminho.

Chegara o momento. Perdido na imensa e majestosa basílica, o frei Francis abismava-se com a prestigiosa magia das cores e dos sons. Depois de invocarem o Espírito infalível, símbolo de toda a perfeição, ergueu-se um bispo - era o monsenhor di Simone, reconheceu o monge, o advogado do santo - e adjurou São Pedro a pronunciar-se, por intermédio de Sua Santidade Leão XXII, ordenando ao mesmo tempo a toda a assistência que prestasse atenção às palavras solenes que iam ser pronunciadas.
Nesse momento, o papa ergueu-se calmamente e proclamou que Isaac Edward Leibowitz seria no futuro um santo. Estava consumado. Doravante, o obscuro técnico de outrora fazia parte da falange celestial. O frei Francis imediatamente dirigiu uma prece ao seu novo amo, enquanto o coro entoava o te-deum.
Caminhando num passo vivo, o sumo pontífice surgiu um momento depois tão bruscamente na sala de audiência onde o fradinho aguardava, que a surpresa cortou o fôlego ao frei Francis, privando-o um instante da palavra. Ajoelhou-se depressa para beijar o anel do Pescador e receber a bênção, depois ergueu-se desajeitadamente, atrapalhado com o belo pergaminho iluminado que mantinha às costas. Compreendendo o motivo de sua perturbação, o papa deu um sorriso.
- O nosso filho trouxe-nos um presente? - Perguntou.
O monge rouquejou, meneou estupidamente a cabeça e estendeu finalmente o manuscrito, que o vigário de Cristo fitou muito demoradamente sem nada dizer, com o rosto perfeitamente impassível.
- Não tem importância - balbuciou o frei Francis, que sentia sua perturbação aumentar à medida que o silêncio do pontífice se prolongava -, é apenas uma pobre coisa, um miserável presente... Chego a ter vergonha de ter passado tanto tempo a...
Calou-se de súbito, sufocado pela emoção.
Mas o papa parecia não tê-lo ouvido.
- Compreende o significado do simbolismo empregado por Santo Isaac? - perguntou ao monge, enquanto examinava curiosamente o misterioso traçado do papel.
Como resposta, o frei Francis apenas pôde abanar negativamente a cabeça.
- Seja qual for o significado... - começou o papa, mas interrompeu-se de súbito e começou bruscamente a falar de outra coisa. Se tinha dado ao monge a honra de assim o receber, explicou-lhe, não era porque as autoridades eclesiásticas, oficialmente, tivessem qualquer opinião a respeito do peregrino que um monge tinha visto... O frei Francis fora tratado daquela maneira porque o queriam recompensar por ter descoberto importantes documentos e santas relíquias. Assim, haviam efetivamente avaliado o achado, sem que tivessem, aliás, levado em conta as circunstâncias que o haviam acompanhado...
E o monge começou a balbuciar agradecimentos, enquanto o sumo pontífice novamente se perdia na contemplação dos esquemas tão belamente iluminados.
- Seja qual for o significado - disse ele, por fim -, este fragmento de saber, de momento morto, recuperará vida qualquer dia.
Sorridente, piscou para o monge.
- E conservá-lo-emos sob guarda até esse dia - concluiu...
Só então o frei Francis reparou que a sotaina branca do papa tinha um buraco e que todas as suas vestimentas estavam bastante velhas. O tapete da sala de audiência também se apresentava muito usado aqui e além e o estuque do teto caía em pedaços.
Mas havia livros nas prateleiras que cobriam as paredes, livros enriquecidos por admiráveis iluminuras, livros que tratavam de coisas incompreensíveis, livros pacientemente recopiados por homens cuja tarefa não consistia em compreender, mas em salvaguardar. E aqueles livros aguardavam que chegasse a sua hora,
- Adeus, filho bem-amado.
O humilde guardião da chama do saber partiu novamente a pé em direção de sua longínqua abadia... Quando se aproximou da região frequentada pelo gatuno sentiu-se estremecer de alegria. Se por acaso o ladrão estivesse de folga, naquele dia, o fradinho sentia-se disposto a sentar-se e aguardar seu regresso. Pois sabia, dessa vez, que resposta dar à sua pergunta.
__________________