O despertador na
mesa-de-cabeceira dá o sinal, são seis da manhã.
António, estremunhado,
sacode o sono e levanta-se como um autómato. Tem de acordar a miúda,
preparar-lhe o pequeno-almoço, arranjar-lhe a roupa para vestir depois do
banho.
A mulher está no turno
da noite, só chegará a casa mais tarde, por isso hoje toca-lhe organizar as
coisas. A bem dizer tirando hoje tem sido assim quase todos os dias
desde que está desempregado, vai para meses… tantos que o prazo do subsídio de desemprego
já se esgotou. Não fosse o dinheiro que a companheira traz e já há
muito estariam a viver debaixo da ponte.
Entretanto perdeu a
esperança de arranjar trabalho, uns biscates aqui e ali, umas promessas que dão
em nada… primeiro desfez-se do carro, depois foi vendendo coisas da casa, o
computador, peças do enxoval, o ouro… agora só lhe resta a aliança, mas mesmo
essa vai marchar; também com o casamento no estado em que está, contam-se por
dias a sua utilidade, se é que alguma vez teve alguma…
Não é que não goste da
mulher e ela dele, mas as discussões são tantas, os gritos, os murros na porta,
os choros dela e da filha.
Tudo por causa do
dinheiro! Mas que culpa tem ele de estar no desemprego? Sempre trabalhou,
sempre cumpriu, Que culpa tem?
De início fartou-se de
palmilhar ruas, telefonar, procurar o que quer que fosse, mas depois cansou-se
e começou a ir para o café, assim ao menos a companheira não saberia que ele já
tinha desistido. Começou a beber, um copo aqui, outro ali… claro que a mulher
soube da vida em que andava, foi então que começaram as discussões, a
existência transformada num inferno. A miúda coitada começou a andar nervosa, a
molhar a cama, a ter problemas na escola. Por falar em escola... até tem
problemas em a levar às aulas, há meses que não paga os almoços, mas também
para quem já faz desvios para evitar as lojas do bairro, isso pouco importa;
qualquer dia até a casa lhe tiram, já nem se lembra da última renda que pagou.
Não há leite no
frigorífico, nem há pão, a gaiata vai ter de ir mais uma vez em jejum, oxalá a
mãe dela consiga trazer alguma coisa lá da cantina da fábrica, senão… nem
jantar a criança vai ter.
Ao princípio a família
ainda o ia ajudando, especialmente à cachopa, mas agora também não podem, está
mau para todos, é o que dizem.
Outro dia, alguém o
desfiou para ir roubar cobre; se calhar é isso que vai fazer. Quem diz cobre
diz outra coisa qualquer, não pode é continuar assim.
Vá lá que o tempo até
nem vai mau, mas quando chegar o inverno como será? Tem mesmo de fazer alguma
coisa.
Dói-lhe a cabeça;
ontem esteve a fazer tempo para a mulher abalar para o trabalho e meteu-se nos
copos, ficou a dever, tão cedo não vai voltar aquele café…
Que raio de vida!
p.s. escrevo no dia 101 deste governo, que conhece tanto as gentes do seu país com
eu conheço a marca do ar condicionado da residência oficial do Primeiro-Ministro.