sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Sursum Corda (Corações ao alto)




Deu dois passos hesitantes em direcção à porta, apontou o dedo indicador à campainha e, a meio do movimento parou.
-“Talvez seja melhor reconsiderar, afinal de contas isto pode ser mesmo um passo sem retorno… e se me arrepender?
O melhor é encontrar uma alternativa, outra solução menos radical. Isso do último recurso é quase sempre uma desculpa para trilhar o caminho mais fácil; mas… e se desta vez não for? Se não existir mesmo uma outra solução?
Afinal recebi um ultimato, e antes do ultimato muitos avisos, cada vez mais insistentes e mais nítidos também. É sempre assim, quando se ignora o primeiro, ou até mesmo o segundo, ainda vá que não vá; mas depois não há hipótese, ignoram-se todos… o terceiro, o quarto, e por aí fora até ao confronto final.
Ao princípio, quando ainda não existem sinais, na altura em que a semente do problema se aninha, tudo é possível, tudo se consome, mastigado indiferentemente, seja doce, seja amargo, ou macio, ou áspero, tudo serve desde que seja a gosto. Mas depois já não é bem assim… surge um pequeno estremeção, uma diferença de temperatura que arranha a sensibilidade… e o esforço para retomar sem reservas os hábitos adquiridos começa a ser mais e mais exigente, mesmo doloroso. Há que tomar precauções, pelo menos á luz da razão. Só que em vez de confrontar o problema, prefere-se contorná-lo. Os cuidados são tomados para o evitar partindo do pressuposto que apenas existe o que se vê, longe da vista e sursum corda.
Segue-se caminho, olhos no chão, orelhas tapadas, passo estugado, e de repente… por qualquer razão intangível, pára-se, olha-se para trás, e leva-se com todo o percurso nas ventas; todos os erros, todas as consequências imediatas, todas as opções que se perderam. Primeiro incredulidade, depois desorientação, por fim um torpor, um estado de choque, misturados com uma contida revolta incontível, a mais absoluta contradição. As dores são excruciantes, lancinantes, incontornáveis.
Eis o ultimato: Ou eu, ou outro eu que não eu, enfim, outro eu qualquer.
Só não consigo entender como me deixei chegar aqui? É claro que não tenho outra opção!”
Prime a campainha. A porta abre-se num estalido automático. Entra.
Em redor um ambiente asséptico a emoldurar uma recepcionista loira de sorriso artificial. Entretanto o telefone toca e ela atende.
“Consultório dentário, boa tarde.”
Fim.

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