sábado, 27 de agosto de 2011

campos de beldroegas para sempre


saí de casa e apanhei um táxi sem dificuldade estava muito calor mas é quando eles se deixam apanhar melhor entrei

bom dia rua zero por favor ah você quer ser devolvido exclamou o motorista e riu-se fiquei calado não queria conversa mas ele olhou-me pelo retrovisor e perguntou quer ir de marcha atrás não obrigatoriamente disse sem paciência o táxi estrebuchou e resmungou qualquer coisa parecida como despachem-se ou segurem-se e o motorista apressou-se a controlar a direcção pois o carro já se tinha posto em andamento felizmente seguíamos em frente e as casas passavam depressa mas com cuidado parámos num semáforo estava vermelho e entoava baixinho um cântico revolucionário com barbas

com que então vai voltar suspirou o taxista não me leve a mal mas acho-vos piada não tem graça nenhuma interrompi seco a ver se o calava mas ele continuou não leve as coisas tão a peito você assim faz-se velho falava olhando pelo retrovisor que parecia estar a gostar da conversa mas viu-se obrigado a olhar em frente pois o táxi arrancou à bruta ainda no vermelho e eu mal tive tempo de me agarrar com ambas as mãos à porta da esquerda enquanto o carro virava à direita sobre duas rodas

casas ruas pessoas cães lojas sacos de plástico postes tudo num bailado desajeitado nervoso e sem fim mais um quarteirão e chegamos à rua zero não sei se quer entrar pelos negativos adentro perguntou-me o retrovisor com cara de motorista não obrigado fico mesmo na zero disse e foquei os olhos na magnífica rua que se abria como um grande ovo de nada

o táxi parou mesmo em frente a um par de namorados envergonhados que tirava fotografias junto à montra enjoativa duma drogaria azulada então paga ou não paga resmungou o retrovisor ah sim desculpe aqui tem obrigado disse e saí a porta fez pum e o táxi desfez-se esverdeado pela sarjeta abaixo que arrotou alarve às vezes acontece quando está muito calor

comecei a percorrer a rua com entusiasmo de turista apesar de já ter ouvido falar dela e das suas famosas casas de paredes transparentes lembrei-me então das palavras sábias da minha mãe filho se entras numa ficas como elas e só voltas a ser opaco depois do beijo do verdadeiro amor histórias mas mesmo assim quem se arrisca a ficar transparente para sempre

para não ser tentado seguia olhando para o chão e via que das pedras da calçada brotavam cachos de beldroegas esparramadas e carnudas não havia sombras e a rua que começara larga era cada vez mais estreita e duvidosa

uma rapariga cor de tijolo ultrapassou-me ofegante está calor disse com dificuldade e sem parar desapareceu na subida cada vez mais íngreme ganhei coragem e apressei o passo sentia o sol a queimar as formigas que corriam para os seus buracos escuros

algumas portas estavam abertas e podia ver lá dentro velhinhas vestidas de preto sentadas ao lado de cântaros de barro a transpirar água fresca mas era arriscado com licença disse uma voz atrás de mim e desviei-me para deixar passar um casal de mão dada pareciam os namoradinhos que tinha visto a tirar fotografias lá em baixo logo de seguida passou um grupo de mulheres e homens divorciados aos gritos seguidos por uma excursão de ex combatentes mutilados a cantar uma gaivota voava voava bolas quanto menos espaço mais gente se junta pensei e esgueirei-me o melhor que pude por entre cotoveladas e pisadelas e num derradeiro esforço a rua desembocou finalmente num largo deserto estranhei para onde foram todos

as casas em volta pareciam abandonadas e as beldroegas cresciam como palmeiras encostadas às paredes e para além de mim ninguém silêncio no centro do largo havia um bebedouro que me piscou o olho aproximei-me e abri a torneira que fez aquele barulho seco e engasgado dos canos quase vazios que logo se transformou no som dum rádio velho ao longe ouviam-se músicas antigas e vozes de locutores de outros tempos jovem dás-me lume disse uma voz cavernosa mesmo atrás de mim assustei-me virei-me e vi um sujeito escanzelado recostado numa espreguiçadeira de lona com ar de morto vivo e de cigarro apagado entre os dedos o senhor não devia fumar disse ao ver o seu ar cadavérico jovem dás-me lume insistiu está bem puxei do meu isqueiro e acendi-lhe o cigarro que se incendiou como um rastilho e em menos de dois segundos já o velho estava em chamas e logo explodiu com um estrondo delicodoce que me projectou pelo ar

por sorte caí em cima dum molho fofinho de beldroegas já colhidas e arranjadas atordoado ouvi ao longe o som do rádio que saía da torneira seca aqui posto de comando das forças armadas

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